Não chove há dois dias em Bissau, a capital guineense. A terra teve
tempo de secar, o bafo quente é o céu que respira e o sol exuberante
vigia-nos. Está implacável e jocoso da nossa condição ofegante. Talvez
seja ele que faz a terra palpitar. O maestro tribal que cadencia os
passos dos homens e das mulheres, das crianças e dos recém-nascidos. O
compositor das emoções, dos sonhos e dos sorrisos. Há-de ser responsável
pela percussão telúrica e pela forma como o corpo de Ernesto Nambera
contorna o ar, esses interstícios da respiração do infinito. Este
bailarino do Ballet Nacional da Guiné-Bissau movimenta-se com explosão,
gira rápido, pisa o chão com força e gravidade, desliza os pés, e salta
como um funâmbulo sob o fio invisível das leis da Física. Parece que
levita.
O tambor é o coração acelerado. O compasso entra-nos pelos poros,
parece que nos rasga, faz-nos explodir numa espécie de catárse. A terra
em transe, e o corpo a parecer que quer levantar-se, mover-se, dançar.
Ernesto, aquele que dança, o engenheiro informático que está no segundo
ano de gestão. O dançarino guineense que estudou três anos na École des
Sables (escola de areia, essa chuva do chão), em Dakar, Senegal, com uma
bolsa da embaixada norte-americana quer, um dia, ser diretor-geral de
cultura, para dar o seu conhecimento ao país. Foi o número um da turma
dele e o pai foi o maior impulsionar da carreira de dançarino, quando os
amigos lhe chamavam “bandido” por só gostar de dançar. Começou a fazer
playback, em concursos, nas festas da adolescência. Hoje é coreógrafo e
um bailarino forte, robusto, com alma, de olhos focados no horizonte.
É balanta, palavra que significa literalmente “aqueles que resistem”,
uma etnia dividida entre a Guiné-Bissau, o Senegal e a Gâmbia. São o
maior grupo étnico guineense, representando mais de 25% da população
total do país. São binhan braza, povo braza. Entre fulas, manjacos,
bijagós, papéis e mandigas, reinam os balantas. Há os balantas bravos,
balantas cunantes, balantas de dentro, balantas de fora, balantas manés e
balantas nagas. Ernesto já nasceu em Bissau, tem esse sangue quente e
foi a dança que o levou a saber mais sobre as origens, ao pesquisar
sobre a música Tabanca. Redescobriu-se guerreiro. Em 2005, a coreografia
que preparou para o Carnaval, mesclando folclore africano com dança
contemporânea, foi vencedora. Agora, ali no palco do Centro de Cultura, é
novamente a sua dança a mesclar estilos e tradições de ritmos do
folclore de África. Um corrupio explosivo, que faz o corpo dos homens e
das mulheres latejar.
É ele, Ernesto Nambera, sem perder o fôlego, como se homenageasse os
antepassados, a condição tribal, exaltando a vida, a morte e o infinito.
Celebra como se evocasse os janbacos, os feiticeiros, ou curandeiros
tradicionais. E, neste embalo, vamos juntos, numa emoção forte,
incontornável, porque, afinal, ela veio. É nesta erupção súbita, que
redescobrimos poros por onde expelir toda uma tempestade tropical,
quente e fria. É esta chuva no corpo. Ernesto nela e nós em Ernesto.
*Crónica publicada a 15 de Julho, no Porto24, com a chancela Bairro dos Livros.
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