Depois da última crónica, nunca mais me dediquei à literatura de
chão. Até porque, apercebi-me, esse efémero estilo literário, apenas
cultivado pelas divagações de quem olha a cidade com o ímpeto ingénuo de
achar que, ainda, lhe poderá descobrir interstícios, é exercício
reservado a quem já esgotou todas as possibilidades de inventar charadas
no regresso a casa.
Acho que a culpa, no fundo, é do varredor de ruas, esse ofício
invisível e de ruidosa condição, sobre a qual as formigas, as baratas e
as aranhas rogam pragas, com toda a certeza. Poderia ter sido apenas o
poste, mas não. O varredor de ruas acabou de vez com essa minha
experiência iniciática em olhar o chão, privando-me de querer resgatar o
dia anterior, pela cartografia do solo. Ele liquida o que resta do dia,
aniquila quaisquer vestígios de buliço humano. Se a civilização humana
acabasse, no dia seguinte de manhã cedo, no vazio, e os extra-terrestres
viessem indagar quem morou na minha rua, com certeza, não restaria
qualquer fragmento que pudesse reunir provas para uma narrativa. É que
só os restos da rua são capazes de contar a história de um dia numa
cidade, ou sobre os seres que as habitam. São excertos fugazes, ao mesmo
tempo que epicuristas.
Porém, no caminho para casa, tive uma ideia. Podem aniquiliar os
fragmentos do chão, mas não podem fazer desaparecer as letras do
caminho. Era isso, as letras do caminho. Foi então, caros leitores, que
meti a mão à carteira, e como caderno não houvesse, saquei a conta do
almoço e comecei a escrever nas costas nuas desse papel fino e frágil,
toda a literatura que encontrava no percurso, olhando agora para o
intervalo médio entre o chão e o telhado das casas. Mas acho que vou
deixar isto para outra crónica, não me levem a mal, porque, enquanto
anotava com dificuldade, e como a caneta começasse a falhar, lembrei-me
da Márcia, personagem do meu primeiro documentário, em parceria com F.
Gavioli, no contexto do curso da Academia Internacional de Cinema de São
Paulo.
Márcia, uma moradora de rua, em Higienópolis, que escrevia em folhas
A4 uma mescla de orações aos anjos e episódios soltos da sua vida de
rua. Um bom coração a querer dizer que existe além das vicissitudes do
funambulismo da vida.
Naquela altura, eu e Felipe voltamos para lhe mostrar o documentário
de 20 minutos. Ela achou que ficara curto. Que ficara muita coisa para
contar, que há sempre muita coisa para contar. Um ano depois, em 2008,
ela enviou-me um e-mail a dizer que precisava falar comigo. Respondi que
já não estava em São Paulo, mas perguntei como a poderia ajudar. Nunca
mais me respondeu. O tempo, varredor de ruas da memória, tomou conta do
esquecimento pendular. Porém, na segunda-feira, fiquei a saber que o F.
mudou de bairro e mora perto dela, da Márcia. Depois destes anos todos,
reencontrou-a. Está a ajudá-la.
“- Ela conseguiu um pequeno serviço que permite que durma em uma
pensão, está fazendo um curso de costura que é seu sonho, além de
receber essa pensão e ter uma conta em banco que lhe dá bastante
dignidade. Outro dia fomos em uma pizzaria comemorar seu aniversário,
fazia mais de 20 anos que não entrava em uma. Apesar de ainda divagar
ferozmente sobre vários assuntos que são abordados em nosso
documentário, ela diminuiu, consideravelmente, o número de papéis que
cola nas ruas, sinto que está mais calma e mais centrada, já que tem
mais perspetivas.”
Acho que a Márcia, agora, aos 66, já pode inventar charadas no regresso a uma casa. Podem ser letras no caminho?
*Crónica publicada a 24 de Junho, no Porto24, com a chancela Bairro dos Livros.
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