Olhar para o chão pode não ser, necessariamente, condição
melancólica, ou síndrome de bisonhice e muito menos infortúnio. Conheço
personagens reais que se dedicam, diligentemente, no ofício da
caminhada, à cogitação filosófica de investigar os interstícios do
passeio, seus alinhamentos, ora geométricos, ora esburacados, driblando
fezes de animais (campo minado e oleoso), invólucros de batatas fritas,
folhas velhas, jornais estropiados e pastilhas elásticas com o ADN de
alguém. Como se percebe, há todo um universo de indagação e infinito
raciocínio, digno das teses mais doutas da academia. Outrora, eu própria
já pude contemplar notas de cinco euros, anéis e pulseiras de prata,
bugigangas, farrapos, fios, cascas de laranja e beatas. Tudo coabitando
na mais serena harmonia, como se fossem o princípio do universo e
estagiários da decomposição. Ultimamente tenho sido bastante afortunada
em moedas de um cêntimo. Posso jurar que a lata de chá onde guardo as
moedas de cor de cobre já deve dar para pagar dois cafés e meio no
estaminé do senhor Manuel. Mais surpreendente, porém, será a descoberta
que fiz recentemente.
Caros leitores, sim, o chão que pisamos é terreno fértil para parir
aquilo que denomino de agora em diante por literatura de chão. Bem sei
que poderia ter-me dedicado a encontrar um nome mais sexy, digno dos
anais da literatura comercial e que criasse buzz na comunicação
social, do que simplesmente ter resumido a coisa a literatura
escatológica. Conquanto essa possibilidade fosse a saída mais
escorreita, devo confessar que seria indigna designação para o zelo que
merece.
A semana foi profícua nessa contabilidade literária. Não fosse este
escrutínio detetivesco para as coisas do chão e eu não teria encontrado,
cento e sessenta e nove passos depois de sair de casa,
a-fotografia-tipo-passe-de-um-rapaz. Deveria ter, mais ou menos, dez
anos, era ruivo, sardento à la Tom Sawyer, certamente fugitivo da
carteira de uma avó babada, pusilânime e conservadora – a avaliar pelo
desgaste –, provavelmente caída no momento em que guardava o troco dos
docinhos húngaros acabados de comprar na confeitaria em frente. Não
teria, da mesma forma, me deparado com o bilhete da Zulmira: “Deixei
bacalhau à brás no frigorífico”; o resto de um exame de História da
Sandra: “a II Guerra Mundial foi um momento de grande importância,
porque…”; um andante rasgado; uma oração a santa rita de Cássia: “a
santa dos casos impossíveis e desesperados”. Não fosse eu o mais próximo
do CSI português, exímia dissecadora das palavras calcadas no chão e,
claro, nada disto seria possível: “Sandrine, não me deixes, és a minha
cena. Amu-te”. Bem sei, não é bonito, mas pode ser profundo, dependendo
dos magotes contundentes que se dá na Língua Portuguesa.
Caros leitores, estava preparada para que tudo acontecesse, menos
para isto: mil quatrocentos e setenta e oito passos depois, um bilhete
que era pura poesia, uma ode a este texto: “Sem ti, fico no chão.”
Estava quase a empreender um projeto especial diário, apenas dedicado à
literatura de chão, mas temo que durante uns tempos terei de me
recolher. Quando me levantei para recolher este último exemplar da mais
excelsa literatura, o meu universo ficou, de facto, mais perto do solo,
entrou em transe, vendo estrelas, luzes, seguido de uma dor aguda. É,
meus caros, aquele poste de iluminação não estava nos meus planos.
*Crónica publicada a 5 de Junho, no Porto24, com a chancela Bairro dos Livros.
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