Há qualquer coisa de
esperança na luz do fogo. Apesar da raiva destrutiva. Apesar do rasto
avassalador. Quando o escritor Ray Bradbury escreveu Fahrenheit 451,
remetendo para a temperatura a que ardem os livros, e colocou uma cena
em que os homens falam, de cor, sobre eles, à volta de uma fogueira,
porque a censura condenara as obras a ser pó, pela língua da labareda,
ele queria era metaforizar a esperança. Quando Guy Montag, o bombeiro
dissidente, protagonista do romance escrito em 1953, os encontra,
clandestinos, a falarem dos livros que leram, é como se sentíssemos, que
apesar da desesperança, há uma perspetiva.
Se quando nos tiram todos os
livros – privando-nos da sabedoria escrita e desse alicerce cinzelado
pela mão do Homem-, algo acontece nos mecanismos de resistência de
alguns homens que, com avidez e sageza, se unem à volta de uma fogueira,
é porque há uma possibilidade. É que eu vejo o horizonte dessa
humanidade sempre que estou à volta de uma fogueira. Uma espécie de
feitiço em que os homens são somente homens, em que as mulheres são
somente mulheres, estendidos à condição de existir, ali e naquele
momento, usando a mais bela das tecnologias: as vivências como
repositório de aventuras e relatos de ser. Talvez seja isso o que nus
realmente possuímos.
E esse feitiço
acontece-me desde pequena. À luz de fogaréus respeitosos no chão da casa
dos meus bisavós fiz a minha entronização. Sem televisão e depois de
sopas de cavalo cansado, contavam-se histórias reais, misturadas como o
imaginário popular e telúrico. Façanhas de homens que chegavam a casa
com coelhos à cintura porque a caça fora boa; histórias de mulheres que
criaram filhos sozinhas porque os homens à guerra foram e lá ficaram;
relatos de noites em branco por causa dos lobos; contos de resistência,
como o fogo. Talvez por isto, hoje, sempre que me sento ao redor delas,
não resisto a perguntar aos que lá estão:
- Lembras-te de alguma história?
É como se padecesse
de uma maleita dos bichos carpinteiros pelo corpo inteiro, como se a voz
fosse mais rápida do que a timidez. Aconteceu a semana passada,
enquanto a Sara e o Anselmo alimentavam o fogo para as castanhas e os
pimentos da horta do Éden, esse Jardim do Pólo de Indústrias Criativas
do Porto. Havia folhas secas a estalar como ingredientes nobres dessa
labareda; havia cheiro a aldeia nos nossos cabelos, na nossa roupa, nas
nossas mãos. Havia tocos secos acamados no meio do carvão. E nós a
costurar no ar os fios invisíveis que deixam essas estórias soltas, pelo
éter. Uma espécie de liberdade bruxuleante.
Numa horta de um pólo
de indústrias criativas creio que não poderá haver algo mais de
tecnológico do que esta condição humana do que a magia da fogueira e da
memória oral à volta dela. Apesar de o rasto das gestas narradas não
serem visíveis, creio que é a única coisa que o fogo não destrói mas
motiva: o feitiço inextinguível de sermos natos contadores de
histórias.
*Crónica publicada a 19 de Novembro de 2015 no Porto24
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