É fácil. Neste caso começa com um anúncio na internet: “Procura-se gestor de empresas para empresa internacional”.
O candidato envia currículo, é selecionado de imediato, comemora com os
amigos, não faz perguntas – até porque tem um percurso imaculado, só
não encontra trabalho entre nós –, não participa em nenhuma entrevista,
não considera isso estranho. Só sabe que vai ganhar um salário de sonho
e, por isso, aluga a casa no país de origem, despede-se da família e
parte, uma semana depois, com um bilhete que “será depois recompensado à
chegada”.
Só que, “à chegada”, ele é raptado. Sim, raptado! A estrada para o
inferno começou quando deixou de fazer perguntas, ou cegou com a luz de
uma pequena esperança. Não é juízo de valor, é a função do narrador
omnisciente a contar o final da história.
É, depois, obrigado a entrar num camião, com outros rostos tão
perdidos e desesperados quanto o dele. Percebe que a estrada é sinuosa,
galga-se quilómetros de buracos e lombas, a grande velocidade.
Entranha-se, nas narinas secas, um cheiro a savana e suor em ebulição.
Homens enclausurados.
Pensa no fim, porque cogitar no pior seria ter uma réstia de
esperança, e a ilusão já não entra num coração aflito depois da primeira
cegueira fatal. Horas depois, sob um calor tórrido, o motor para.
Abre-se a porta, é noite cerrada, gélida, sepulcral. Ele pergunta o que
está a acontecer e leva uma coronhada de metralhadora. O sangue que
escorre desde a ferida exposta na cabeça até à boca sacia-lhe a sede,
embora já nada disso importe. É enclausurado, novamente, num contentor
com os mesmos rostos cansados, carcomidos pelas horas de agonia.
Tenta falar, mas sente que a voz falha. Será o medo a velar por ele?
Ter medo pode ser uma réstia de esperança. Uma janela que se abre por
dentro e sussurra: estou vivo! A camisa nova e nívea que comprou numa
loja de marca, no país de origem, está maculada com espirros vermelhos.
Durante algum tempo é ele e aqueles outros homens, no meio do mato,
sozinhos, encarcerados, desolados, imiscuídos de existência. Não sabe
durante quanto tempo, mas dormiu muito, morto de cansaço, vencido pelo
ar rarefeito, mas sobretudo no fio existencial de que essa réstia de
esperança fosse um acordar de novo, percebendo que, afinal, tudo não
passava de um sonho muito ruim.
Quando, enfim, abriram a porta, percebeu que, se fossem mais uns
dias, talvez não voltasse a acordar. Pensou que seria o melhor.
Chamam-no. Obrigam-no a ligar à família em Portugal. Pedem um resgate:
500 mil euros. Crime organizado. Extorsão. Rapto. Tráfico. Sabe-se lá
mais o quê. Deixaram-no aos pontapés, com risos alarves. Esqueceram-se
da porta aberta.
Durante a noite arriscou a vida. Com o coração a ensurdecer o
pensamento correu até onde pôde. Aprendeu a rezar. Viu uma luz. Arriscou
uma povoação. Acudiram-no. Voltou para casa com ajuda de um homem que
não sabe o nome. Está entre nós, são e salvo, pelas ruas deste país. O
tráfico de pessoas existe e pode estar à distância de um clique. Mais
difícil e desconcertante: esta história foi-me testemunhada num balcão
de atendimento; poderia ter sido qualquer um de nós, com a vontade de
uma réstia de esperança.
*Crónica publicada a 14/o5/2015 no Porto24
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