Contrabando, tiros, tempestade, crime
organizado, polícia militar, uma anfitriã raptada por presos foragidos e
apagão em casa de um escritor-desconhecido. Se isto não era fruto da
minha imaginação bem podia estar metida numa alhada. Laura fez questão de me mostrar as perucas, os batons, a variedade de armações de óculos e os doces que comprara nessa tarde, em Ciudad del Este, no Paraguai, a meia hora de autocarro de casa dela, em Foz de Iguaçu, no Brasil. Também fez questão de me dizer que no mês anterior tinha sido mantida refém, na própria casa, quando dois foragidos de um estabelecimento prisional do estado do Mato Grosso, membros de um cartel, tomaram conta da residência. Ela alimentou-os e nem os vizinhos desconfiaram quando esta mulher de cabelo louro-garrido, voz grave e rouca, ar um pouco psicótico e vontade desenfreada de falar, “saía para ir às compras, dia sim, dia não” e deixou de receber visitas. Caros leitores, foi nesta casa-hospedaria, onde, em 2010, fiquei durante três noites. Soube de tudo isto ainda nem sequer tinha tirado a mochila para me instalar. Se a hesitação me acometeu, outra hipótese não tive às dez e meia da noite deste lado da cidade-fantasma. Para intensificar o cenário bizarro, eu não pregaria olho a noite inteira, atordoada com os tiros que a Polícia Militar brasileira disparara, para dispersar os contrabandistas do rio Paraná, que tentando enganar a vigilância na Ponte da Amizade, entre o Brasil e o Paraguai, esquivam às margens fluviais o mais que podem em produtos eletrónicos, armas, tabaco e bebidas. A mim bastava-me o carimbo de saída do Brasil e de entrada no Paraguai ou na Argentina, para poder, posteriormente, permanecer por mais três meses em terras brasileiras. Da primeira vez que saí para a linha de fronteira, o autocarro que saiu do Brasil nem sequer parou na fronteira brasileira. Afinal, a minha dor de cabeça começaria aqui, quando à noite tentasse voltar, parada para interrogatório. Nesta primeira viagem, ia encontrar um conceituado jornalista paraguaio. No final da conversa, A. passou por casa para me oferecer o livro dele “El ultimo vuelo del Pajaro Campana”. Mal chegamos, o céu desatou numa fúria, impondo pesadas gotas tempestivas, levantando a terra, criando de imediato um caudal que corria pelas ruas, trazendo lama e pedras e arrastando carros. Escureceu como se o mundo desistisse de tudo, não havia luz elétrica. Restava-nos ficar à mesa, a conversar, até que a parca vela ardesse até ao fim e a tempestade cessasse. Neste momento, pairaria a dúvida: estaria eu mergulhada na realidade ou na ficção? Já adivinhava que iria perder o meu último autocarro, para atravessar a fronteira. Tinha um passaporte por carimbar, um gravador, uma máquina fotográfica, e um rasto de suspeita num dia de tempestade. Contrabando, tiros, tempestade, crime organizado, polícia militar, uma anfitriã raptada por presos foragidos e o apagão em casa de um escritor-desconhecido. Se isto não era fruto da minha imaginação bem podia estar metida numa alhada. Horas depois, a tempestade deu tréguas e A. levou-me à fronteira, já noite cerrada. Depois do interrogatório, lá me deixaram passar a fronteira, a pé. Não me recordo como cheguei à hospedaria de Laura, quase meia-noite. “– Oh portuguesa louca, estava preocupada com você. Até pensei que você teria sido raptada pelos meus amigos do cartel, li no jornal que, afinal, eles ainda andam por aqui. E, me conta, afinal o que você comprou lá na cidade?”. *Crónica publicada originalmente no Porto24 a 18 Fev 2015, 17:11 |
quinta-feira, março 05, 2015
Linha de Fronteira
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