A escultura de madeira suave e perfeita em
forma de peixe na estante dos livros de viagens relembra uma lição de
vida: que há gente a gostar de gente, abnegadamente, só porque sim, com a
vida real em perfeita harmonia.
Por Vanessa Rodrigues 7 de Maio de 2011 Do bananal vem o rumor do mar, misturado com o riso da manhã e os olhos dele, grandes, bem desenhados, ternos. Negritude é a pele grossa, sábia genética, que adensa o calor e suaviza a humidade tropical quando nela assenta. Tem uns dentes alvos, e um olhar manso. Alexandre dos Santos, 22 anos, morador na roça Agostinho Neto, na ilha de São Tomé. Estou de passagem. Sou a branca turista a querer saber das gentes. É pescador em part-time, homem da roça, separado da mãe dos filhos, um arroubo juvenil. E ainda lhe sobra tempo, à noite, se restarem dobras, para dançar Funaná. 一 Vais comigo?, convida. É filho de cabo-verdianos – ainda se lembra do crioulo, o dialeto de casa –, dos muitos que migraram para esta ilha africana tão vizinha da linha Equador, metáfora para um recomeço. Quer saber: onde moro, de onde sou, se tenho filhos, marido, logo assim, nos primeiros segundos. Não perde tempo. A sedução não é um jogo, é convicção. Também já foi militar, motorista de uma política são-tomense. Tão novo, tanta vida a latejar. Despeço-me. Ele com a tristeza inconsolável da despedida. Eu, com um certo desconforto. Penso que deve ser charme da condição insular. No dia seguinte, espera-me, de manhãzinha, à porta do hotel. 一 Desculpa ter vindo assim sem avisar. Queria ver-te uma última vez. Posso nunca mais te ver. Desculpa-me. Homem garboso, ousado, todavia educado. Veio pedir autorização para, ao final do dia, “logo”, me entregar um presente. O desconforto mistura-se com gratidão: que numa cidade desconhecida me sinta em casa, que o meu ser-eu de passagem se resigne à simplicidade dos afetos. 一 Quero dar-te um presente da minha terra. Mereces. Para que não esqueças. Posso? Mereço? E “logo” é agora. Estou já de saída e, de novo, ele aparece, transpirado, sincero. É a segunda vez no mesmo dia que ele vem à cidade por minha causa, mais de 30 minutos de estrada. 一 Vim da roça de propósito para te entregar. Desculpa ter-me atrasado, tive de pedir a mota emprestada. Não posso ficar muito tempo. Pedi ao meu puto para ir buscar cacau à roça, para ti. E esta escultura fui eu que a fiz. E desculpa, estou envergonhado. Pedi à minha irmã uma saca para a embrulhar e ela pôs o cacau nesta de peixe. 一 Vieste de propósito entregar-me isto, de longe, sem me conheceres. Já te disse e agradeço: não se pede desculpa por genuínos gestos de generosidade e afeto. Eu não sei como te retribuir, sinceramente. Muito Obrigada. Foram menos de cinco minutos. Despedimo-nos, um beijo no rosto, um olhar grato. Esfumou-se na noite já cerrada. Nunca mais nos vimos. Às vezes, ainda ouço o rumor do mar entre o bananal, quando olho para a escultura de madeira suave e perfeita em forma de peixe na estante dos livros de viagens, como quem relembra uma lição de vida: que há gente a gostar de gente, abnegadamente, só porque sim, com a vida real em perfeita harmonia. *Crónica publicada no Porto24 a 6 de Janeiro de 2015 |
quarta-feira, janeiro 07, 2015
Pescador, cor de cacau, artesão da roça
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