segunda-feira, março 29, 2010

Malas roubadas



Ouvi aquele amarfanhar plástico. Ele revolveu o saco transparente, enquanto o metro fechava as portas. Afundou as mãos à procura de alguma coisa que não encontrava. Mergulhou depois os esguios braços, preenchidos num blazer bege que lhe dava, claramente, um ar de bom aspecto.

Segundos depois, ergueu as mãos afundadas no saco plástico, como se as içasse de um mar profundo e os dedos pareceram-me alicates de manicure aparentados com palitos. Os olhos arregalaram-se muito, vermelhos e mal lavados, com remelas ressequidas, enquanto as mãos desnutridas abriam e fechavam violentamente uma carteira de mulher. Havia mais no saco plástico: amostras de carteiras sem vida.

Ele chegou a olhar gulosamente para os meus sacos, e hoje os meus ombros ganharam de bónus mais dois volumes, além da casa ambulante feminina do dia-a-dia que pode ser a minha bolsa: o da máquina fotográfica e o da mala do fim-de-semana. Foi quando se fez “clic” cá dentro (às vezes sou lenta, muito embora tenha sido a única, asseguro, que aquilo percebeu): aquelas malas deveriam ser, certamente, roubadas, e ele encafuara-as uma a uma (umas cinco) num saco plástico comercial, grosso, por onde espiava de quando em vez.

Quando percebeu que eu o mirava, como se tivesse, por acaso, descoberto o seu segredo - embora ele próprio não tivesse feito, particularmente, cerimónia em esconder o que ali se passava – sei que chegou quase a pedir-me silêncio com o olhar, ameaçando subtilmente que um dos meus volumes também poderia, quem sabe, virar cadáver-bolsa num saco plástico tão grosso como aquele, reduzindo-os a olhares gananciosos e mãos-alicate usurpadoras.

Ainda o olhei uma, duas vezes. Cruzámos o olhar como se fosse a primeira vez que nos víamos e, como não podia ter a certeza, realmente, que se tratasse de carteiras roubadas, fiz de conta que ele não existia. Tentei, na verdade. Depois de colocar a carteira no saco plástico ele começou a simular um escarro que só ficou no goto a aquecer-se melado e depois desceu goela abaixo. Um, duas, três vezes. Aquele som de quem puxa as goelas. Depois, a mão no nariz-função-limpa-catotas. Limpou as mãos-alicate às calças de ganga muito puídas (não sei se de velhas, se de modas), escarafunchou o rasgão roto abaixo na virilha para sentir a pele e os pêlos, talvez, e ao “dlim-dlom” metálico da estação de metro de Francos este rapaz de cabelo loiro, seboso, e blazer impecavelmente ajustado ao corpo magro, saiu com os seus dois sacos plásticos, carregado de malas roubadas, confundido-se no anonimato das gentes do metro. Suspirei muito profundamente de alívio.

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