Ma(R)quiavel
Havia um casal a beber cerveja, já bêbados, em pé. A mulher por baixo deles, com um filho ao colo, rezava para que eles, e a cerveja, não caíssem em cima dela e da criança. Uma velha de olhar invasivo era a única que não se incomodava com aquela violência do ferry destrambelhado. Disse que aquilo não era nada, que a semana anterior tinha sido bem pior, que a água entrara pelo ferry, levara malas, quase virara, que houve gente a vomitar, que uma das cordas rebentou e que um homem quase caíra ao mar. Não, aquilo não era "nada", repetia. E nós tínhamos medo. Ela não. Nem o homem de óculos redondos, fundo de garrafa, de camisa amarela, justa ao corpo. Respirava serenamente, olhava o vazio como se conseguisse ver o horizonte que as nuvens carregadas ocultavam. De repente, saiu da quase-hipnose. Pôs a mala de contabilista no colo, abriu-a, escolheu um livro e fechou-a. Folheou-o.
Era “O Príncipe”, do italiano Nicolau Maquiavel. Nós, gente com medo, apertada, quase-náfragos. Ele, muito sossegado, embalado pela tirania de um mar maquiavélico. Invejei-lhe a calma e devo tê-lo olhado descaradamente, pois baixou o livro, cruzou o olhar e ignorou-me, com um pérfido sorriso nos olhos.
Sem comentários:
Enviar um comentário