Nunca me esqueci da história, ainda que vagamente recorde dos pormenores que o tempo deu conta de esgarçar, como faz o vento às últimas folhas que os galhos agarram, para que não fiquem sozinhos, no "strip-tease" da estação.
Sempre que íamos à Ferrajosa, em excursão familiar, com piqueniques improvisados no meio de um campo verde alheio, já que a propriedade do Sr. F. era apenas a estrutura do que outrora fora a casa dos pais dele, no concelho de Lousã, em Coimbra, ele lembrava-nos, em tom cerimonial e algo cavernoso, o episódio que já se tornara fábula na região.
Primos, tios, pais e avós: empreendíamos tamanha dedicação naquele dia de viagem, saindo de manhã cedo do Porto, aprumando-nos com roupas confortáveis, que o motivo principal que à partida nos ali levava, estava relegado à condição secundária do esquecimento. O tio Q., filho de F. e de d. E. (que tanto insistira na revogação dessa terra e morreu antes sem nada que se fizesse) fazia questão de lá ir reconhecer propriedade, ainda que aquilo fosse já escombros e abandono. Nunca chegariam a construir lá nada. Nunca se chegaria a reconhecer coisa nenhuma. Aquilo era já um prenúncio do que seria. Dava até um certo medo ver aquilo, pois a casa lembrava a dos fantasmas do nosso imaginário infantil. Sem portas; paredes a desfazerem-se; janelas partidas; pedras no telhado com poucas telhas, já; estruturas a ameaçar ruir, madeira velha, apodrecida, mal-cheirosa; e um arrepio gelado sempre que lá entrávamos, cadenciado por um esmagar que parecia roto de escombros esmigalhados como bolachas, a desfazerem-se em sedimentos arenosos pela pressão involuntária dos sapatos em terreno frágil.
Nos anos seguintes fomos espectadores anuais da ruína da casa que nunca se voltou a erguer - que hoje foi engolida pela erosão e pela natureza que lhe roubou terreno. Há pelo menos 20 anos deixei de ser espectadora da ruína da casa fantasma da Ferrajosa, que tantos arrepios nos provocavam: a mim e aos primos.
A explicação para esse calafrios parece-me, agora, evidente: tinha a ver com aquela história que o Sr. F. fazia questão de nos contar sempre que ali estávamos. Se por acaso não a contasse, o tio Q. lembraria - como o fez muitas vezes, numa ingenuidade de quem conta pela primeira vez. E a mente de uma criança, ainda desprovida de vícios de cenários sistematizados pelo mundo dos adultos e do contexto cultural, acaba por imaginar conforme o mundo lhe parece, recorrendo ao lápis mental que esboça os seres mais estrambólicos que se possa imaginar.
Curiosamente, sempre que me recordo dessa história, vem-me à memória a mesma imagem estrambólica e cinzenta, sem estruturas mentais, ou cenários viciados, de um homem velho, sugado pela miséria, triste e assustado. Fiquei-me com aquela parémia visual; e como não lá voltei, guardo o desenho que o baú da memória registou.
Havia um caçador, contava-se, que saíra para ir ao centro da aldeia, sem a espingarda e, por isso, não tivera forma de se defender de um lobo que o apanhou desprevenido, enterrando os dentes na carne rija de velhice que lhe era corpo. Embrenhado no meio da floresta, no caminho de regresso a casa, o caçador não teria visto, sequer, o luzir do olhar do lobo, ávido, no meio das árvores e da penumbra, que o seguia, silencioso (e ardiloso na arte de fisgar a presa), talvez fugido da alcateia da Lousã (imagino-o faminto, cinzento e feroz) perdera a parte da refeição que lhe teria sido destinada para a noite da divisão alimentar do clã lobístico. Ou, sendo ele um prevaricador marginal das lides de uma alcateia, se aventurasse na arte da caça humana, Ou a coisa fosse, isso sim, um ritual de passagem na mui nobre honra canina de integrar uma alcateia: talvez, por isso, um cerimonial de iniciação da condição da estirpe canis-lupus, que nós, humanos, desconhecemos. Afinal tantas vezes ouvimos falar de lobos que atacaram humanos e não deixaram nada, a não ser os ossos. Até o charco de sangue tinha silo lambido. Foi isso que aconteceu com o tal caçador.
Contava o sr. F. que o homem, amigo das gentes daquelas redondezas e homem honesto, sapiente na arte da caça, foi, então, comido por um lobo que não deixou nada, a não ser as botas de caçador, com os pés lá dentro, pois não teria conseguido destruí-las - demasiado duras e elásticas para uns dentes de lobo, talvez já cansado e a precisar de prótese dentária, de tanta porcaria mastigar. Eu sei que a história é uma coisa macabra, dessas que povoam a nossa antologia de contos populares, e que muito dizem da nossa psicologia cultural lúgubre, cavernosa e negra, que pode ser a efabulação lusitana. Imagine-se, então, como ficava o imaginário de uma criança de sete anos depois de uma estória assim, arrepiada com a casa em escombros e um conto recorrente de lobos que comem gente. Cheguei a sonhar com isso algumas vezes. Uma delas que conseguia salvar o pobre caçador, outras que o lobo andava atrás de mim. Quis salvá-lo muitas vezes. Fugi de lobos dentro da minha cabeça. E nunca cheguei a ver lobos a não ser em sonhos, filmes, e na imaginação profícua que pode ser a nossa ao longo da vida.
Agora que penso nisso e me recordo do episódio (re)contado, que nunca esqueci, a coisa acomete-me de novo de uma arrepio gelado, não pela memória do que ficou daquilo, mas porque tal como na metáfora dos vampiros de José Afonso (que agora percebemos que andam aí, à solta, dissimulados, mas a circular em praça pública), há homens que comem homens, como as histórias de lobos que comem homens, de uma forma mais selvagem e dissimulada do que a imaginação alguma vez possa imitar, transpondo do real para o que parece ser uma versão ficcionada da vida. É gente cinzenta, faminta e feroz. Demasiado perigosa porque vivem num mundo pessoal sem escrúpulos e fazem tudo (mesmo tudo) para enterrar os dentes da malvadez na leveza dos outros. Uma vez na alcateia deles, não há como escapar-lhes. São homens de maus instintos. Andam à solta.
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