Amina apaixonou-se. Quis ter filhos, muitos, beijar o homem que amava, dormir com ele, fazer amor, enrodiscar-se nos lençóis pela manhã pachorrenta, abraçá-lo, sorrir-lhe, tocar-lhe devagarinho a pele escura e encardida de rugas que só ele tinha. Amina quis tudo isso, e no final só queria uma casa. Branca. Tão branca, como a pureza que carregava na alma por aquele amor. Era amor. Sabem o que isso significa? AMOR. Ela sabia exactamente como era a casa que queria. E o que era o Amor. E com Amor ela queria duas casas de banho, uma sala com uma janela enorme para o jardim, dois quartos – um para os dois e outro para quando os filhos viessem; uma cozinha (pequena, poderia ser pequenina) uma sala onde pudesse costurar e uma garagem do lado de fora, para guardar o carro, se a sorte os afortunasse com um emprego honesto que lhes desse para comprar um carro para conhecer os arredores de Lahore, e quem sabe, um dia, sair dali de carro, para outra casa mais pequenina, como a cozinha, onde pudessem ser felizes, beijar muito, amar, dormir agarradinhos, enrodiscar-se nos lençóis pela manhã pachorrenta, abraçar-se, sorrir (mesmo que fossem sorrisos pequeninos como a outra casa, como a cozinha, que poderia ser um pedaço de espaço onde pudesse apenas respirar).
Amina queria tudo tão pequeno, que até parece simples. Amina quis. Amina podia ter sido tanto. E não deixaram Amina ser. Só me lembro dela com o lenço no rosto. As mãos muito juntas a esfregarem-se. Os olhos negros, tão rasgados e escuros, bem delineados que poderia jurar que ela os desenhava todos os dias antes de sair de casa. Quem os fizera assim, com certeza, era um artista da perfeição, um exímio nas linhas oculares que faz as mulheres olharem com mais doçura e intensidade como ela.
Lembro-me tão bem de ti, Amina. A tua voz lenta e baixa para que não te evidenciasses demasiado. Querias tudo aos poucos e sonhavas com tudo isso, assim bem pequenino.
Lembro-me tão bem de ti, Amina. A tua voz lenta e baixa para que não te evidenciasses demasiado. Querias tudo aos poucos e sonhavas com tudo isso, assim bem pequenino.
Lembro-me quando entraste na Casa de Abrigo pela primeira vez. As marcas roxas nos teus olhos. As manchas que tinhas tanta vergonha de mostrar como se não fossem nada. E depois ficavas ali no canto a desenhar a casa que querias para ti. Branca. E nós a olhar-te com uma impotência que nos carcomia cá dentro. Como era possível que não pudéssemos fazer mais nada do que aquilo: ensinar-te a desenhar para esqueceres, e orientar-te num ofício honesto para que pudesses ser autónoma e um dia, quem sabe, fugir para bem longe de Lahore, onde os teus irmãos não te pudessem mais pôr a vista, bater, na ameaça de te acabar com o fôlego, só porque não querias casar com o homem que te impunham. E tudo porque te tinhas apaixonado... por outro. Esse era amor. O outro, um dote de infância. Calaste-te, mas todos já sabiam. O povo tem língua curta, incenciada de pó picante que os faz entornar o bafo nos ouvidos dos outros.
O teu pai chegou ameaçar matar-te. Um pai a ameaçar a filha. Saltaste a janela de casa para o jardim onde a tua mãe plantava Cardamomo e havia Canela. Que grande jardim: onde te faltava sempre o ar. Conseguiste vê-lo, abraçá-lo, beijá-lo, sorrir-lhe. Foi tudo. E seria a última vez que o verias. Seria a última vez de tudo.
No dia em que te foste do Abrigo, porque os seis meses de tolerância haviam passado, senti um aperto no peito porque a tua liberdade era mais livre que toda a maldade do mundo, da imposição e do aperto cá dentro. Deu medo porque sabíamos, como outras que não passarias das ruas de Lahore. O que é a cultura Amina? O que é ela senão, às vezes, uma deturpação do que resta de vida. Ali seria a última vez que te veríamos. Amina, acredita que não nos conseguimos conformar. Amina, a tua casa. A tua liberdade. E o único “erro” foi apaixonares-te Amina. Amor, Amina. Tu sabias. Mesmo quando os teus irmãos te deram banho de gasolina e acenderam os fósforos.
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