quarta-feira, março 31, 2010

Homem UltrA Mud.Erno [1]


Empenhado no hiper-desenvolvimento da superficialidade. Não se revê em nada que não seja sinónimo de parecer bem, mesmo que isso implique não o ser...

Produto Interno Bruto I



São portugueses. Cantam em inglês. E fizeram música da boa. Meio chill out. Meio World Music pós-moderno. Algumas músicas chegaram a compilações como Saint-Germain-Des-Prés, Café 4, e Buddha-Bar VI, com nomes de grandes DJ's como Nicola Conte, Herbert e Kruder & Dorfmeister... Quando chegaram, em 2002, as Samsonite ainda estavam pouco na moda e eram malas para ricos (talvez ainda o sejam), por isso trouxeram uma de cartão com soul e funk, lá dentro, e  uma electrónica que não chega bem a sê-lo como lingerie. Estavam, talvez, demasiado à frente do nosso tempo. Já não existem. Ou existem um pouco na net e no meu itunes. "Blue Pink Hotel" foi a banda sonora de uma publicidade da Yorn.

Ei-la:


Esqueço-me sempre que para me esmagar o optimismo, basta estar em Portugal por um tempo e levar um enxerto de porrada de ego. Fico sempre mais íntima de Murphy. Sou até capaz de soletrar a lei.

Em trânsito (1)

Ma(R)quiavel

O mar estava furioso. Sacudia intermitente o velho ferryboat. Pensámos que naufragasse, não tardaria. Chovia muito e o vento, solidário, chapinhava as gotas salgadas para a cara. Seríamos duzentos passageiros, no mínimo, a fazer a travessia Bom Despacho/Salvador da Bahia, no Brasil. Sentados, apertadinhos, como se nos conhecêssemos há muito tempo, segurávamos as malas para que não caíssem à água. Aquelas cordas que serviam de rebordas a bombordo e estibordo, e a que nos encostávamos para nos segurar da revolta marítima, estavam a desfazer-se. Dava medo. Tive medo. 

Havia um casal a beber cerveja, já bêbados, em pé. A mulher por baixo deles, com um filho ao colo, rezava para que eles, e a cerveja, não caíssem em cima dela e da criança. Uma velha de olhar invasivo era a única que não se incomodava com aquela violência do ferry destrambelhado. Disse que aquilo não era nada, que a semana anterior tinha sido bem pior, que a água entrara pelo ferry, levara malas, quase virara, que houve gente a vomitar, que uma das cordas rebentou e que um homem quase caíra ao mar. Não, aquilo não era "nada", repetia. E nós tínhamos medo. Ela não. Nem o homem de óculos redondos, fundo de garrafa, de camisa amarela, justa ao corpo. Respirava serenamente, olhava o vazio como se conseguisse ver o horizonte que as nuvens carregadas ocultavam. De repente, saiu da quase-hipnose. Pôs a mala de contabilista no colo, abriu-a, escolheu um livro e fechou-a. Folheou-o.

Era “O Príncipe”, do italiano Nicolau Maquiavel. Nós, gente com medo, apertada, quase-náfragos. Ele, muito sossegado, embalado pela tirania de um mar maquiavélico. Invejei-lhe a calma e devo tê-lo olhado descaradamente, pois baixou o livro, cruzou o olhar e ignorou-me, com um pérfido sorriso nos olhos.

terça-feira, março 30, 2010

O Mal é um antro, o Bem uma máfia de bordel


Tenho cada vez menos dúvidas (e isto porque me resta sempre o optimismo debaixo da pele), ainda que as minhas costas não estejam suficientemente vergadas para que sinta o peso dos Invernos da vida, de que há um Mal que nunca acaba e um Bem que nunca chega a cumprir-se nas coisas mais elementares.

Se a lei do merecimento realmente existe, ainda não a vi aplicada com rigor e a justiça devidos. Eu sei. A idade é tenra. Eu sei, haverá outros portos a que não chegarei nunca para ver gente ancorada em marés menos violentas. Eu sei de tudo isso. E, às vezes faço de conta que não sei determinadas coisas para que não carregue o peso todo nas costas.

Já me fiz de tontinha para que se não percebesse que sabia determinadas coisas que o peso dos afectos dos outros nos intimidam a tomar partidos ou posições. Acreditamos que um dia as pessoas vão acabar por perceber quem é o outro, e se não chegarem nunca a percebê-lo melhor, porque se entenderam; e talvez isso seja o essencial, porque amor é paciência e, claro, compreensão. É quando a água que ferve aos poucos começa a sair da fervedor e escalda a pele com queimaduras de primeiro grau que a paciência empola. No final, fica em nós aquele travo amargo de sabermos o que os outros não viam porque cegos de sensibilidade afectiva; que sabíamos que mais cedo ou mais tarde “aquilo” iria acontecer, e que sim, aquela outra pessoa era capaz de perpetrar tamanho acto de maldade. No fim, tudo é possível , então e, por isso, cruamente ele percebeu, da pior forma (não que haja uma melhor, mas poderia ter sido mais atenuado) que o amor não passa de uma arte da guerra. A ex é uma cabra dos Infernos, sem escrúpulos e anda a fazer-lhe a vida negra até ao desgaste, numa valsa ordinária que pode arrastar-se anos. Quem sabe uma vida inteira. Só que ele sabia: Ponto. Ele sabia quem tinha, que andava a dormir com o inimigo e, mesmo assim, teimou em querer mudar-lhe os escrúpulos, até que aceitou o Inferno e aprendeu a saltar a fogueira de lado, para que as fagulhas do ar não o queimassem demasiado.

Por isso, se alguém souber de exemplares da lei do merecimento, escrevam-me que ficarei feliz em revogar a tese segundo a qual o Mal esmaga sempre o que entendemos por Bem. Isso, com absoluta certeza. E isso, porque tenho visto e ouvido o intrincar de actos fabricados que depois se tornam factos aos olhos do que chamamos Justiça.

Tenho visto o rosto da perversa a ensombrar a vida de muito boa gente que me é próxima, e tenho provas irrefutáveis de que o calculismo, o materialismo e outros “ismos” de índole maquiavélica - barata, é certo, mas igualmente eficaz - são os melhores estrategas na arte de foder o outro. Assim, devagarinho, com dor insuportável e sem vaselina, como se tudo se resumisse a um esquema tão milimetricamente arquitectado que percebemos que a lei da mediocridade de da esperteza atroz são verdadeiras vencedoras e, por isso, não haverá juiz que desconfie do desequilíbrio do cenário que se lhe impõe. 

Será impossível pensar que aquilo que se nos apresenta nada tem a ver com a verdade. Eu, também, se visse as coisas sem saber os meandros de como se tem arquitectado a destruição do outro com não-factos, maldades e desgastes psicológicos com uma criança no meio não teria dúvidas em julgar que o Mal que se me apresenta é o Bem. E que ao revés, o Bem é o arauto da perversidade, como se reunisse em orgia involuntária o antro  do crime organizado e o bordel da máfia, como se fossem uma única e a mesma coisa. A mistura é grossa. Passemos à fina. A vida é perversa. E não tenho bem a certeza se ainda deva ter dúvidas. Talvez me vacine contra o optimismo.

segunda-feira, março 29, 2010

Malas roubadas



Ouvi aquele amarfanhar plástico. Ele revolveu o saco transparente, enquanto o metro fechava as portas. Afundou as mãos à procura de alguma coisa que não encontrava. Mergulhou depois os esguios braços, preenchidos num blazer bege que lhe dava, claramente, um ar de bom aspecto.

Segundos depois, ergueu as mãos afundadas no saco plástico, como se as içasse de um mar profundo e os dedos pareceram-me alicates de manicure aparentados com palitos. Os olhos arregalaram-se muito, vermelhos e mal lavados, com remelas ressequidas, enquanto as mãos desnutridas abriam e fechavam violentamente uma carteira de mulher. Havia mais no saco plástico: amostras de carteiras sem vida.

Ele chegou a olhar gulosamente para os meus sacos, e hoje os meus ombros ganharam de bónus mais dois volumes, além da casa ambulante feminina do dia-a-dia que pode ser a minha bolsa: o da máquina fotográfica e o da mala do fim-de-semana. Foi quando se fez “clic” cá dentro (às vezes sou lenta, muito embora tenha sido a única, asseguro, que aquilo percebeu): aquelas malas deveriam ser, certamente, roubadas, e ele encafuara-as uma a uma (umas cinco) num saco plástico comercial, grosso, por onde espiava de quando em vez.

Quando percebeu que eu o mirava, como se tivesse, por acaso, descoberto o seu segredo - embora ele próprio não tivesse feito, particularmente, cerimónia em esconder o que ali se passava – sei que chegou quase a pedir-me silêncio com o olhar, ameaçando subtilmente que um dos meus volumes também poderia, quem sabe, virar cadáver-bolsa num saco plástico tão grosso como aquele, reduzindo-os a olhares gananciosos e mãos-alicate usurpadoras.

Ainda o olhei uma, duas vezes. Cruzámos o olhar como se fosse a primeira vez que nos víamos e, como não podia ter a certeza, realmente, que se tratasse de carteiras roubadas, fiz de conta que ele não existia. Tentei, na verdade. Depois de colocar a carteira no saco plástico ele começou a simular um escarro que só ficou no goto a aquecer-se melado e depois desceu goela abaixo. Um, duas, três vezes. Aquele som de quem puxa as goelas. Depois, a mão no nariz-função-limpa-catotas. Limpou as mãos-alicate às calças de ganga muito puídas (não sei se de velhas, se de modas), escarafunchou o rasgão roto abaixo na virilha para sentir a pele e os pêlos, talvez, e ao “dlim-dlom” metálico da estação de metro de Francos este rapaz de cabelo loiro, seboso, e blazer impecavelmente ajustado ao corpo magro, saiu com os seus dois sacos plásticos, carregado de malas roubadas, confundido-se no anonimato das gentes do metro. Suspirei muito profundamente de alívio.

Bel.monte (variações)

quinta-feira, março 25, 2010

Perdão


Quem disse que o crime não compensa não poderia estar bom da cabeça. Não sabemos até se terá sido amarrado numa camisa de forças e esquecido num canto bolorento de uma casa de saúde mental, ou quem sabe tenha postulado a premissa com uma boa "litrada" de embriaguez idealista. Há por aí tantos exemplos de que a arte de subverter o que é estruturalmente convencionado como bom em mau, o mau em péssimo (e o péssimo em parente próximo de um superlativo do superlativo com vítimas amigadas dos diminutivos dos diminutivos) é das mais rentáveis actividades da passagem por este mundo. Além disso, porque todos eles, os maus - feios e porcos, parece - têm todos um momento warholiano: aqueles 15 minutos diários, subsidiados pela imprensa. 

Recentemente vários padres foram considerados culpados por crimes de pedofilia e diz-se que o Papa nada fez para os castigar. Vá lá, sabemos, um clássico. Não invoquemos as excepções, pois pouco sabemos sobre elas. Voilá: também não chegam à imprensa. É tudo demasiado silencioso. 

O ano passado em Manaus, um padre amigo estava revoltado porque o Prelado da região nada tinha feito para punir o anterior padre da comunidade que ele estava a substituir, por provas irrefutáveis de pedofilia. Não há espaço no mundo que possa servir de pergaminho para escrever com tinta justa todas as atrocidades que os Homens cometem, em nome de deus e de outras tantas coisas de ideologias de embriaguez (talvez como todas) como a de dizer que o crime não compensa. 

A subversão usa a técnica dos opostos: quando subvertida, subverte-se a si própria em acto contínuo para que deturpação anterior possa ser contestada. É a natureza do fluxo das coisas, dos opostos, contrários. Depois, porque não podemos afirmar que alguém está categoricamente certo porque a moral e o sistema são inventados pelos homens, transpostos pela linguagem, que é apenas uma tentativa aproximada de traduzir o pensamento, por isso, um método finito, incompleto, falacioso e com uma margem de erro demasiado grande para poder ser levada em conta. (O Marquês de Sade estava "errado" segundo os valores morais do sistema social aceite e dado como o correcto; mas a imoralidade também tem sistemas, códigos, e é naturalmente certa).

Relativismo? Nada me garante que este seja O sistema, evidentemente tão imperfeito (tendo em conta que a ciência é tão errónea, quanto eu a resolver fórmulas químicas). Eu sei que a ligação é leviana e pornográfica. Eu sei que estou a ser, pois, tendenciosa e descontextualizada sobre assuntos tão aparentemente distantes no tempo. Também sei que o perdão é das maiores capacidades de elevação humana. Mas há coisas em que dispenso a elevação. 

segunda-feira, março 22, 2010

"Somos o esquecimento que Seremos"



“Somos o esquecimento que seremos” é o primeiro verso de um poema do argentino Jorge Luis Borges, que o pai do escritor Héctor Abad Faciolince guardava no bolso, transcrito à mão, no dia em que foi assassinado por guerrilhas paramilitares colombianas, e que sobreviveu à poça de sangue que manteve o corpo morno até ao momento em que o escritor e a mãe o encontraram. É também o título do livro do autor (Quetzal, 2006), que M. me sugeriu, sobre a vida e a luta do pai, Héctor Abad Gomez, médico de Saúde Pública, pelos direitos fundamentais dos colombianos. 

Terminei-o ontem sob um enxerto de porrada psicológica. Terminei-o com os olhos encharcados. Angustiada.

Anestesiei o goto que não me deixava engolir - e me deixava entalada - com o tinto da D. Ermelinda (quase parecia aquele sangue exangue que escreve as últimas páginas do livro, misturado com sal de pingas liquefeitas e que nos saem sem querermos dos sacos lacrimais), disfarcei as gotas que correram, tossi para que se não percebesse o que poderiam ser suspiros, e traguei a cigarrilha na esperança de que o fumo me desentalasse, como um defumador de terreiro umbanda, quem sabe, a asfixia.

Se as palavras são, parece, o mapa mais aproximado do que se nos vai no pensamento, acrescentarei que há qualquer coisa no mecanismo delas, quando se nos lá entram, de se dividirem em tarefas para procurar os pontos mais vulneráveis. E, quando se lhos acham põem-se a chafurdar as gavetas íntimas, devastando os afectos e um pouco mais a revolta e as frustrações, com a subtileza de um carregado e severo estalo na cara - que nos acomete inesperadamente -, como quem escarafuncha uma ferida que não cicatriza. Abre-se. Abre-se e, devagarinho, vai infectando sem nunca deixar ir-se a moinha.

Mexeu-se-me qualquer coisa cá dentro. Aquelas palavras foram-se-me às gaivas. Chafurdaram. Escarafuncharam. E, eu, sem nunca ter vivido sequer a mais ínfima suspeita da mordaça e da repressão política, senti-me mais esganada do que se tivesse puxado o lenço real que poderia estar a envolver-me o pescoço. Toquei para ver se tinha posto o cachecol de lã que levara. Nada. O invisível do livro do Faciolince tratou disso com mestria para uma menina como eu.

Sou uma menina nos sentimentos. Sei. Arrebatada, espontânea, impulsiva e a precisar de colo muitas vezes, mesmo que não haja razão aparente para que precise dele. Isso só nós sabemos e não precisa, na verdade, de haver razão. Acho que passei a (ainda pouca) vida até aqui a negá-lo, por considerar que não precisava dele - forte, inquebrantável - e a tê-lo sempre disponível para resolver os problemas dos outros. Mas de colo não: eu não precisava. Assim como não precisava que os outros percebessem quando estava num daqueles momentos em que o sol, afinal, estava a dormir (hibernado um bocadinho, atrás das nuvens, mais tímido). Agora preciso deles: do sol e do colo.

O limite da contundente negação foi até ao exacto momento em que comecei a desabar, há um ano, por falta do colo que negava. A culpa sempre foi minha. E isso como se a vida tivesse voltado ao exacto momento zero onde tudo (re)começa. Estou por aqui. Os poros estão com sensores hiperbólicos expostos, como fracturas. E, talvez, por isso, precise cada vez mais de colo para aliviar os mais pequenos nadas que mexem com as gavetas cá de dentro.



"Mas tu já começas a compreender e a sentir todo o esforço, o trabalho, a angústia, o isolamento, a solidão e intensa dor que a vida exige a quem escolhe o difícil caminho de criar beleza" (página 250)

Hector Abad Gómez

sexta-feira, março 19, 2010

Lilic Putz



O e-mail dela está seco, enxuto. Parece quase que a esponja silenciosa do delete passou pelo quadro azul claro do ecrã do computador. Está viciada. F5, F5, F5. Lilic Putz não consegue parar de apertar aquela tecla silenciosa noutras funções e tão viciante na arte de nos pôr de novo a máquina actualizada.

“Pena que não tenhamos uma igual na vida, no corpo, no pensamento, nos amores”, resmungava.

F5: actualizar. Vivia uma ansiedade aflitiva para actualizar a máquina que o ecrã já mostrava como “updated”. “Updated” Lilic, “Updated”, Lilic. Será que não percebes que já actualizaste há um minuto. Um minuto, Lilic. Putz, mais uma vez. Vai. Abriu a página.

Username: lilicputz@mail.com; password putz 03445. Loading. Loading. Loading. F5: porque demora demasiado para a ansiedade de Lilic. Mulher moderna: e-mail no telemóvel, que é agenda, carteira, ipod, televisão, máquina fotográfica, de filmar: a vida à distância de um toque do polegar ao indicador e muita gordura no ecrã - Polegar.

Carregar. Loading. Vai Lilic mais uma vez: esquizofrenia paralela à vida: F5, F5, F5. Caixa de entrada. Ver e-mails. O mundo pode ser um contentor virtual de lixo electrónico. O lixo pode tomar conta da nossa vida. Um spam. Dois spams. Vários Spams e e-mails inacabados (Rascunhos, gatafunhos virtuais, saliências, reentrâncias sensoriais: F5). Oh Lilic. Tanta gente a gostar de ti. Tanta gente a mandar-te e-mails em dias comuns e hoje está vazio. E quando encheria depois: nada que importe realmente. E se isso te alimentasse o ego, Lilic, estavas inflada até não aguentar mais o “efe” cinco.

A vida frugal, à tona. Lilic é isso, Lilic.

Sempre soube que Lilic, um dia, poderia entrar em colapso. Curto-Circuito. É difícil perceber, afinal, por que ainda não entrou. O telefone toca. Mais um cliente. Um almoço. Reuniões. Apresentações. Mails, Mails, Mails. "Ah: Correio electrónico queres tu dizer Lilic". A agenda cheia: o polegar com gordura. As impressões digitais no ecrã. Desliza sobre ele Putz, Lilic. Polegar. Polegar.

“Concentra-se, vá. Agora podes entreter-te com o que tens ali à tua frente”. Lilic dizia para si em tom ameno. Ela nunca tinha tom ameno para os outros. Das poucas vezes que estava connosco, Lilic era frenética, eléctrica, acelerada. Aquela respiração. Cigarro, mais cigarro. Mais Cigarro, Mais Cigarro. Ai o stress, Lilic. Tantas palavras novas na tua vida. Quando ainda agarravas as bonecas pensavas que um dia irias brincar ao F5? Seria nome de robot. Ou corrida de carros. Outra fórmula mais avançada, ou menor. Sim, um racing menor. Bem menor do que aquele que fazes no dia-a-dia, Lilic. De um lado para o outro como se fosse o último “lap” (blahhh: vrrum). 

Assim não vais durar muito Lilic. Nada mesmo. Vais-te evaporar bem antes de perceberes que a vida não vale um F5, mas um “control erre” para suspender o avanço. “Delete” algumas coisas. Sobretudo aqueles e-mails, que fazem de ti a pessoa mais famosa do mundo. Vais colocar tudo no Trash, baby?

“ Olá tudo bem, linda
Estou tentando melhorar nossa situação, por favor leia meu recado de amor.”

Spam (Lilic não tem namorado)

“Badoo
Revelino Rocha Souza deixou uma mensagem para você”

Spam (Putz, quem raio é este gajo?)

“Polícia de Segurança Pública
Procedimento Investigatório, Favor comparecer”

Spam (Não abras Lilic, a PSP está mais atarefada a brincar aos polícias e ladrões e a disparar armas em primeiras missões)

“Letícia Araújo quer oferecer-te três prémios”

Spam (facto: não conheces nenhuma Letícia Araújo e, depois, por que razão haveria ela de oferecer-te três prémios?)

“Carlinha
Oi Coração”

Spam (“Carlinha? Oi Coração?”)

“Badoo (“de novo esta porcaria?”)
Raul Alfar deixou uma mensagem para você
Spam

E o Krezebek Silva; e o Daniel Franço; e o Rafael Zebrinha Zebrinha (Zebrinha, ahahhahaah); e o Rivelino Rocha (tu, outra vez?); e Marcio_Bene65 …

Spam. Spam. Spam. Spam. Spam. Spam. Lixo!

“Ei Vanessa, fotinhas novas!” (Nope)
Spam
“Convite pessoal de Cátia Germana”
Spam.
“Pizza Hut, Cadê você”
Spam
“Quero Ser Magra.Com”
Spam
“Informativo Quero Ser Magra número 001345 Apoio Mulher no salto.com.br”
Spam

Vá Lilic, não desanimes. F5.F5.F5. 

“Tudo tão inútil como esvaziar esta caixa de correio electrónico”

à.g.u.ahhh

Isadora

Houve uma altura em que ela teve dúvidas. Tudo começou com um flirt, dois, e depois vieram as mensagens. Isadora estava a atravessar a primeira crise com a Cris. Ela precisava sair do lodo para o qual não tinha vocação e para onde Cris sempre a arrastava. 

A Cris quando se dava para o caminho da auto-comiseração era profissional: crises de choro no quarto escuro, raiva, tanta raiva, insultos, expulsões do quarto em que se encafuava, dentes a ranger de nervos, impropérios contra ela, contra si, o mundo e a vida, murros na parede, louça revirada, cabelos desgrenhados, mãos em abraço profundo, quarto com roupa espalhada, chão, muito chão, insegurança – tanta insegurança – e a reclamar o final da relação. 

Era melhor que ela, Isadora, vivesse sem ela, Cris, esse furacão desequilibrado em sintonia bipolar. Isadora estaria melhor sem aquelas cenas, sem o peso, a contundência, as lágrimas, a raiva, a fúria, o ódio de si, dela. Era melhor terminarem e seguirem cada uma o seu caminho. Dez anos bastavam. O desgaste era notório, embora Isadora nunca entendesse realmente a razão daqueles retiros de auto-lamaçal psicológico. Era como se ela mergulhasse, de repente, num pântano que está à margem de cada um. Uns não o vêem, ignoram-no, nem sabem da real existência; outros mais sensíveis, sentem-lhe o cheiro e dão-se à truculência de o cheirar mais de perto até ficar com o odor entranhado e dele não quererem mais sair. 

Cris não era nem metade do que queria ter sido. Tantos cursos por acabar. Outros a meio e sempre a saltitar de um para outro por tédio ou desencanto. “O ensino está entregue às traças  humanas, aos vampiros caquéticos da Academia, e à retrocidade dos professores frustrados que não foram nem metade daquilo que quiseram um dia ser. Por isso se dão ao trabalho de transformar os pupilos em seres mais cinzentos que as nuvens da cidade mais poluída”, ouvia-a dizer várias vezes, entre um copo de cachaça, de shot, e umas quantas cervejas para juntar ao fervilhar líquido que o estômago já cozinhava. 

Aqueles cabelos negros dela, longos e fartos, os olhos sinceros, levemente rasgados no final, a pele perfeita, sem rugas de quase 40, as mãos delicadas – incrivelmente delicadas para quem gosta de mexer em motores, serviços de carpintaria e afins manuais que costumam rondar as predilecções masculinas. As unhas nunca estavam sujas de óleo, sempre impecavelmente pintadas de vermelho. Quando se fechava na sua caixa, que era quarto, e o mundo todo por um tempo – o tempo que durasse, nunca se sabia quanto – descascava esse vermelho com os dentes. Vi a Cris muitas vezes enraivecida, intransigente, alheia ao redor para se dedicar ao fosso voluntário sem razões aparentes. As razões de nós desconhecem-se, basta um nada aparente (que é sempre um acumular de nadas como o Universo) para que se nos ponham numa arca gelada de letargia. Chegou a explicar-nos que tinha um planeta astrológico que pairava sob o signo solar dela. Chegou a dar-nos explicações místicas, mas em nada isso a ajudou alguma vez. Consultou uma astróloga, uma psicóloga, uma taróloga; fez reiki, shiatsu, astrologia védica, astrologia cigana, runas. Enfim. Foi até onde pôde com a curiosidade mística que lhe explicasse um pouco daquilo que era. 

A única coisa que, realmente, a ajudava era a paciência de Isadora em trazê-la de volta às outras divisões da casa, para começar, e depois porta fora como conquista final. Sol: os dias de sol eram sempre um bom pretexto. E com Cris precisava de Isadora. Era toda a mística, karma, numerologia humana...

Desta vez a Isadora, com um gesto de quem não quer falar demasiado alto para que Cris não ouça, disse que era o fim. E foi aí que começaram as mensagens. A Cloé era leve, solta, primaveril. Uma flor de mulher disposta a dar as pétalas só para que lhe sentíssemos o cheiro. “Vês como a vida é perfumada”. E isso para lhe dizer, no fundo, que o cheiro de pântano não era vida para ninguém. Nada sério, porém. Apenas um cardápio de odores mais diversificados que lhe acometeriam de vez em quando. "Queres?"; "Vamos?"; "Fazemos?"

O primeiro encontro foi na livraria. Depois veio o café, o cinema, o teatro, o mar, a praia, a piscina, o chá, a casa de campo, o jardim no centro, os pastéis de fim de tarde, as exposições, os passeios pela orla, os almoços, as mãos, os abraços, os beijos e a cama. Bom, veio quase a cama. Isadora apenas queria sentir-se viva. Não queria apaixonar-se. 

Amar, amar, Isadora já sabia a quem amava, apesar do pântano. Queria tudo isso, queria a leveza, queria a degustação, o encantamento, os odores de Primavera na mulher-flor, mas logo percebeu que não queria nada sério, a não ser a terapia invísível que nos faz sentir vivos e amados, noutros perfumes. 

Isadora, tão doce e conciliadora. Isadora tremeu. Até hoje não consegue falar com Cloé, que acabou por se mudar para a Europa. Budapeste, talvez. Isadora não se lembra bem, embora aquela carta perfumada (“Se mudares de ideias, estou à tua espera") evidenciasse que a história mal resolvida poderia um dia voltar à superfície. Se tivesse deixado ir-se, certamente Isadora ter-se-ia afundado em areias movediças para a qual não estava preparada. Uma mulher assim, tão leve, abnegada, e fácil de seduzir, é mais difícil de se agarrar os afectos; é demasiado leal ao que sente. "A fidelidade é uma balela", dizia. Mulheres como Isadora são de uma só. E Isadora tinha de ir tirar a Cris do pântano, durasse o tempo que durasse.

quinta-feira, março 18, 2010

Amina


Amina apaixonou-se. Quis ter filhos, muitos, beijar o homem que amava, dormir com ele, fazer amor, enrodiscar-se nos lençóis pela manhã pachorrenta, abraçá-lo, sorrir-lhe, tocar-lhe devagarinho a pele escura e encardida de rugas que só ele tinha. Amina quis tudo isso, e no final só queria uma casa. Branca. Tão branca, como a pureza que carregava na alma por aquele amor. Era amor. Sabem o que isso significa? AMOR. Ela sabia exactamente como era a casa que queria. E o que era o Amor. E com Amor ela queria duas casas de banho, uma sala com uma janela enorme para o jardim, dois quartos – um para os dois e outro para quando os filhos viessem; uma cozinha (pequena, poderia ser pequenina) uma sala onde pudesse costurar e uma garagem do lado de fora, para guardar o carro, se a sorte os afortunasse com um emprego honesto que lhes desse para comprar um carro para conhecer os arredores de Lahore, e quem sabe, um dia, sair dali de carro, para outra casa mais pequenina, como a cozinha, onde pudessem ser felizes, beijar muito, amar, dormir agarradinhos, enrodiscar-se nos lençóis pela manhã pachorrenta, abraçar-se, sorrir (mesmo que fossem sorrisos pequeninos como a outra casa, como a cozinha, que poderia ser um pedaço de espaço onde pudesse apenas respirar).

Amina queria tudo tão pequeno, que até parece simples. Amina quis. Amina podia ter sido tanto. E não deixaram Amina ser. Só me lembro dela com o lenço no rosto.  As mãos muito juntas a esfregarem-se. Os olhos negros, tão rasgados e escuros, bem delineados que poderia jurar que ela os desenhava todos os dias antes de sair de casa. Quem os fizera assim, com certeza, era um artista da perfeição, um exímio nas linhas oculares que faz as mulheres olharem com mais doçura e intensidade como ela. 

Lembro-me tão bem de ti, Amina. A tua voz lenta e baixa para que não te evidenciasses demasiado. Querias tudo aos poucos e sonhavas com tudo isso, assim bem pequenino. 

Lembro-me quando entraste na Casa de Abrigo pela primeira vez. As marcas roxas nos teus olhos. As manchas que tinhas tanta vergonha de mostrar como se não fossem nada. E depois ficavas ali no canto a desenhar a casa que querias para ti. Branca. E nós a olhar-te com uma impotência que nos carcomia cá dentro. Como era possível que não pudéssemos fazer mais nada do que aquilo: ensinar-te a desenhar para esqueceres, e orientar-te num ofício honesto para que pudesses ser autónoma e um dia, quem sabe, fugir para bem longe de Lahore, onde os teus irmãos não te pudessem mais pôr a vista, bater, na ameaça de te acabar com o fôlego, só porque não querias casar com o homem que te impunham. E tudo porque te tinhas apaixonado... por outro. Esse era amor. O outro, um dote de infância. Calaste-te, mas todos já sabiam. O povo tem língua curta, incenciada de pó picante que os faz entornar o bafo nos ouvidos dos outros. 

O teu pai chegou ameaçar matar-te. Um pai a ameaçar a filha. Saltaste a janela de casa para o jardim onde a tua mãe plantava Cardamomo e havia Canela. Que grande jardim: onde te faltava sempre o ar. Conseguiste vê-lo, abraçá-lo, beijá-lo, sorrir-lhe. Foi tudo. E seria a última vez que o verias. Seria a última vez de tudo. 

No dia em que te foste do Abrigo, porque os seis meses de tolerância haviam passado, senti um aperto no peito porque a tua liberdade era mais livre que toda a maldade do mundo, da imposição e do aperto cá dentro. Deu medo porque sabíamos, como outras que não passarias das ruas de Lahore. O que é a cultura Amina? O que é ela senão, às vezes, uma deturpação do que resta de vida. Ali seria a última vez que te veríamos. Amina, acredita que não nos conseguimos conformar. Amina, a tua casa. A tua liberdade. E o único “erro” foi apaixonares-te Amina. Amor, Amina. Tu sabias. Mesmo quando os teus irmãos te deram banho de gasolina e acenderam os fósforos.  

A pupila de Rubem Fonseca

Gonzos, parafusos e uma caixa de acrílico de três metros. Mais uma cama, uma escrivaninha, um espelho, um sino e o silêncio (pessoal e intransmissível). Feitas as contas, foi tudo o que a escritora brasileira Paula Parisot (agora meia actriz, parece), a pupila do também escritor Rubem Fonseca, precisou para viver Isabela, a esquizofrénica personagem do seu mais recente livro "Gonzos e Parafusos". Disso e de amigos. Pelo menos não a deixaram morrer à fome numa livraria em São Paulo, enquanto durante uma semana vestia a pele da miúda, sem falar com ninguém. Esperemos que a moda não pegue no Brasil, não sei se seria muito agradável ter a Patrícia Melo, por exemplo, a viver Jonas, o Copromanta (arte da adivinhação por meio de observação dos excrementos), personagem do livro com o mesmo nome que ofereci ao meu irmão, há dois anos, e que ainda guarda religiosamente na mesinha-de-cabeceira à espera, talvez, de ganhar algum estímulo para o ler.


Festa Literária Internacional de Paraty 2010

Espero lá estar, de novo, em Agosto...


Depois do inglês Terry Eagleton, do irlandês Colum McCann, do israelita Abraham B. Yehoshua, do britânico William Boyd e do indiano Salman Rushdie, a FLIP tem a primeira autora confirmada para a festa de literatura que põe os escritores a cambalear entre pedras e pedregulhos nas calçadas da maçónica, escrava e imperial Paraty. A iraniana Azar Nafisi é autora de Lendo Lolita em Teerã, traduzido para 32 línguas, que descreve as experiências de uma mulher que vive e trabalha na República Islâmica do Irão. 

O livro ficou por 117 semanas na lista de best-sellers do The New York Times e rendeu a Nasifi alguns prémios – o de livro do ano de não-ficção do Booksense e o Frederic W. Ness, entre outros, além de ter sido finalista do prémio para memórias PEN/Martha Albrand, de 2004.

Ouvir um trecho aqui 
 
Em Portugal podem comprar aqui

quarta-feira, março 17, 2010

colecções da luna...

fase desempoeirando os baús (deve ser porque a Prima.Vera está com as malas à porta); remexendo as relíquias; desengavetando as colecções, os postais; reconhecendo as roupas e os perfumes que nunca usei e que sei que nunca usarei; e redescobrindo/reencontrando os outros pedaços de mim que ficam em qualquer canto de casas, como palpitações recalcitrantes e com vida própria, mais fortes do que eu (não tenho vocação para agente secreto: é muito fácil saber por onde ando). Tenho o péssimo hábito de deixar rasto em todos os espaços das casas, na minha ciente e constante anarquia das coisas (nunca deitar fora as revistas que acho que me vão servir de inspiração para alguma coisa; guardar os bilhetes dos concertos para um dia fazer um quadro, empilhar os livros must read this year na mesinha-de-cabeceira; anotar pequenas coisas para fotografar nas páginas dos cadernos que também vou coleccionando nas estantes do quarto...).

Estas relíquias, cujas caixas guardo, mais do que colecções são coisas que ainda uso...


Maureen Bisilliat



Maureen Bisilliat não é nome de brasileira, embora o Brasil, sabemos, seja o mundo todo no mesmo pote de barro a fervilhar de porções de raça (shaken but not stirred). Maureen não  tem o gingado na raiz que a pariu, apesar dessa terra já ser mais dela do que de muitos brasileiros. Maureen não é Brasil, ainda que seja índia, maracatu, carioca, sambista, candomblé, sertões, baiana e, também, brasileira de raça feita. Maureen não é nada disto , só que agora um pouco mais disso tudo...

sábado, março 13, 2010

sexta-feira, março 12, 2010

“O dia em que Lelê não quis mais sê-lo (mas o mundo já não a reconhecia por outra coisa)


 "sei que as intenções são boas e pra lá de carinhosas, entendo que as pessoas têm preguiça de falar três sílabas, compreendo a fofura dos diminutivos, dou ok para os já viciados e juro que rezo toda noite pra droga não se espalhar mais por aí! DIABOS, MEU NOME NÃO É LELÊ!!!!!"


Era seguramente um manifesto. Ela escrevera-o, assim, em rede social só para amigos e alguns conhecidos. A coisa começou com um, dois comentários, veio o terceiro, o quarto, o quinto, o sexto e por aí foi, até ao vigésimo. 

O essencial é que todos já diziam mais ou menos a mesma coisa: “Lelê amada”, que Lelê era “lindo”, que “Lelê era ela e mais nenhuma”, que “Lelê era Lelê” e o resto não importa,chamaram-na de “helénica”; "he-he-he"; “bunda lelê”. Em tudo me pareceu coisa boa. E Lelê, ou Helena, ou Hela nunca mais se pronunciou sobre o assunto. Ela era (h)ela. Mas, Cadê Lelê? 

Ou talvez estivesse numa das suas crises de carência, com os poros e os sentidos em hipersensibilidade potência máxima de exarcebação. Ela também gosta disso. E de mimo, muito mimo. A nossa Lelê ou Helena, é mimada e carinhosa. Ela não é minha, mas vejo-o sempre como um pouco mais minha por já ter dormido em casa dela e partilhado as paredes que lhe ouvem os lamentos. Tem voz rouca e vivida, embora os cigarros lhe roubem um pouco mais do tom que é seu. 

Lelê não se chegou a pronunciar, ainda. E a correnteza das reacções (contestárias, apologistas, discordantes, conciliadores) foi fluindo. Ainda estão aí, ó, na rede, rodando. Por isso, o teor foi ficando um pouco mais machadiano, digno de uma crónica de costumes sobre os afectos. Eu reduzi ao essencial para que ela reflectisse, depois naquilo: a importância de ser Lelê: 

"Lelê e sua crise de identidade: o dia em que não quis mais sê-lo, mas que o mundo agora lhe negava não ser."
Lelê: Há vidas que se formam ao redor de nós, que podem parecer apenas pedaços de nós, e que são mais inteiros do que pensamos que fossem. Lelê para os amigos, Helena para uma vida inteira! ;) beijocas e saudades!

Ainda espero por Lelê, ou Helena!



quinta-feira, março 11, 2010

Lobos e homens (só restam as botas)

Nunca me esqueci da história, ainda que vagamente recorde dos pormenores que o tempo deu conta de esgarçar, como faz o vento às últimas folhas que os galhos agarram, para que não fiquem sozinhos, no "strip-tease" da estação.

Sempre que íamos à Ferrajosa, em excursão familiar, com piqueniques improvisados no meio de um campo verde alheio, já que a propriedade do Sr. F. era apenas a estrutura do que outrora fora a casa dos pais dele, no concelho de Lousã, em Coimbra, ele lembrava-nos, em tom cerimonial e algo cavernoso, o episódio que já se tornara fábula na região.

Primos, tios, pais e avós: empreendíamos tamanha dedicação naquele dia de viagem, saindo de manhã cedo do Porto, aprumando-nos com roupas confortáveis, que o motivo principal que à partida nos ali levava, estava relegado à condição secundária do esquecimento. O tio Q., filho de F. e de d. E. (que tanto insistira na revogação dessa terra e morreu antes sem nada que se fizesse) fazia questão de lá ir reconhecer propriedade, ainda que aquilo fosse já escombros e abandono. Nunca chegariam a construir lá nada. Nunca se chegaria a reconhecer coisa nenhuma. Aquilo era já um prenúncio do que seria. Dava até um certo medo ver aquilo, pois a casa lembrava a dos fantasmas do nosso imaginário infantil. Sem portas; paredes a desfazerem-se; janelas partidas; pedras no telhado com poucas telhas, já; estruturas a ameaçar ruir, madeira velha, apodrecida, mal-cheirosa; e um arrepio gelado sempre que lá entrávamos, cadenciado por um esmagar que parecia roto de escombros esmigalhados como bolachas, a desfazerem-se em sedimentos arenosos pela pressão involuntária dos sapatos em terreno frágil.

Nos anos seguintes fomos espectadores anuais da ruína da casa que nunca se voltou a erguer - que hoje foi engolida pela erosão e pela natureza que lhe roubou terreno. Há pelo menos 20 anos deixei de ser espectadora da ruína da casa fantasma da Ferrajosa, que tantos arrepios nos provocavam: a mim e aos primos.

A explicação para esse calafrios parece-me, agora, evidente: tinha a ver com aquela história que o Sr. F. fazia questão de nos contar sempre que ali estávamos. Se por acaso não a contasse, o tio Q. lembraria - como o fez muitas vezes, numa ingenuidade de quem conta pela primeira vez. E a mente de uma criança, ainda desprovida de vícios de cenários sistematizados pelo mundo dos adultos e do contexto cultural, acaba por imaginar conforme o mundo lhe parece, recorrendo ao lápis mental que esboça os seres mais estrambólicos que se possa imaginar.

Curiosamente, sempre que me recordo dessa história, vem-me à memória a mesma imagem estrambólica e cinzenta, sem estruturas mentais, ou cenários viciados, de um homem velho, sugado pela miséria, triste e assustado. Fiquei-me com aquela parémia visual; e como não lá voltei, guardo o desenho que o baú da memória registou.

Havia um caçador, contava-se, que saíra para ir ao centro da aldeia, sem a espingarda e, por isso, não tivera forma de se defender de um lobo que o apanhou desprevenido, enterrando os dentes na carne rija de velhice que lhe era corpo. Embrenhado no meio da floresta, no caminho de regresso a casa, o caçador não teria visto, sequer, o luzir do olhar do lobo, ávido, no meio das árvores e da penumbra, que o seguia, silencioso (e ardiloso na arte de fisgar a presa), talvez fugido da alcateia da Lousã (imagino-o faminto, cinzento e feroz) perdera a parte da refeição que lhe teria sido destinada para a noite da divisão alimentar do clã lobístico. Ou, sendo ele um prevaricador marginal das lides de uma alcateia, se aventurasse na arte da caça humana, Ou a coisa fosse, isso sim, um ritual de passagem na mui nobre honra canina de integrar uma alcateia: talvez, por isso, um cerimonial de iniciação da condição da estirpe canis-lupus, que nós, humanos, desconhecemos. Afinal tantas vezes ouvimos falar de lobos que atacaram humanos e não deixaram nada, a não ser os ossos. Até o charco de sangue tinha silo lambido. Foi isso que aconteceu com o tal caçador.

Contava o sr. F. que o homem, amigo das gentes daquelas redondezas e homem honesto, sapiente na arte da caça, foi, então, comido por um lobo que não deixou nada, a não ser as botas de caçador, com os pés lá dentro, pois não teria conseguido destruí-las - demasiado duras e elásticas para uns dentes de lobo, talvez já cansado e a precisar de prótese dentária, de tanta porcaria mastigar. Eu sei que a história é uma coisa macabra, dessas que povoam a nossa antologia de contos populares, e que muito dizem da nossa psicologia cultural lúgubre, cavernosa e negra, que pode ser a efabulação lusitana. Imagine-se, então, como ficava o imaginário de uma criança de sete anos depois de uma estória assim, arrepiada com a casa em escombros e um conto recorrente de lobos que comem gente. Cheguei a sonhar com isso algumas vezes. Uma delas que conseguia salvar o pobre caçador, outras que o lobo andava atrás de mim. Quis salvá-lo muitas vezes. Fugi de lobos dentro da minha cabeça. E nunca cheguei a ver lobos a não ser em sonhos, filmes, e na imaginação profícua que pode ser a nossa ao longo da vida.

Agora que penso nisso e me recordo do episódio (re)contado, que nunca esqueci, a coisa acomete-me de novo de uma arrepio gelado, não pela memória do que ficou daquilo, mas porque tal como na metáfora dos vampiros de José Afonso (que agora percebemos que andam aí, à solta, dissimulados, mas a circular em praça pública), há homens que comem homens, como as histórias de lobos que comem homens, de uma forma mais selvagem e dissimulada do que a imaginação alguma vez possa imitar, transpondo do real para o que parece ser uma versão ficcionada da vida. É gente cinzenta, faminta e feroz. Demasiado perigosa porque vivem num mundo pessoal sem escrúpulos e fazem tudo (mesmo tudo) para enterrar os dentes da malvadez na leveza dos outros. Uma vez na alcateia deles, não há como escapar-lhes. São homens de maus instintos. Andam à solta.