O mar parece mais perto, porque as gaivotas dormem na cidade. Grasnam e revolvem caixotes do lixo como pandilhas competentes. Bicam, rasgam o plástico em três golpes marciais, e depois pipilam regozijadas por contribuir para a imundície coletiva. Chegam a comer restos de carne e a fazer recreio com embalagens de plásticos. Parecem abutres pós-modernos. Parecem mutantes de tão grandes e de meter medo. Saem do mar para a cidade, como mendigas, porque o peixe não se lhes chega.
Ao fim da tarde é ver os sacos estraçalhados, a misturar odores de vizinhos, de moradores incautos que os deixam, frágeis, desapropriados e mal atados, nos passeios, no rês-do-chão das gigantes caixas verdes que guardam os nossos detritos. Terreno maculado, poluto, pincelado com as tintas ácidas da matéria em decomposição.
A velha costuma ajudar à orgia escatológica, tal qual um alcatraz ávido a debicar. Revolve a lixeira, indiferente a quem passa e a olha com asco burguês. Ela usa uma bengala para se apoiar; às vezes serve de vara exploradora naquela sujidade. Tem o cabelo lavado aparentemente lavado, pela humidade visível, os fios grisalhos, uns óculos desajeitados; saia remendada e uma combinação bege por baixo do véu feminino. Manuseia lixo como um cozinheiro manuseia os ingredientes para o jantar; ou como o oleiro acaricia o barro; ou a costureira a máquina para a bainha.
Enquanto ela o faz, o bairro acontece na rotina, a produzir o lixo que ela - e as essas aves marinhas, amanhã - estarão a chafurdar. Vós ainda não sabeis, ou não vos lembrastes, mas o lixo é uma política entranhada nos dias, uma ditadura liberal, uma servidão voluntária, outrora triunfo de Porcos, hoje triunfo das marias-velhas, gaivotas-mutantes.
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