LIVROS
Isabel Allende: "Continuo a ter medo ao começar um livro"
por Vanessa Rodrigues, Publicado em 10 de Agosto de 2010 (no jornal i)
É mandona, ainda erra "muito", escreve poesia erótica e diz que o ponto G está na orelha. Foi um dos nomes maiores da Festa Literária Internacional de Paraty, e conversou com o i sobre o Chile e as suas letras
Sentou-se altiva na cadeira do palco da tenda dos autores da 8.a Festa Literária Internacional de Paraty, FLIP, para falar na mesa "Veias Abertas" (o mesmo título do livro de Eduardo Galeano, que conta com prefácio de Allende). Em menos de duas horas, a escritora chilena Isabel Allende trocou a camisa de organza que usara na conferência de imprensa por uma écharpe de cores quentes, por cima do negro do vestido. A mulher-escritora diz que é mandona, detesta eventos sociais e acha que vai ser "uma velha louca". Comporta-se como uma lady. Tem um olhar grande e doce; melancólico para falar do passado. Gosta de escrever poesia erótica.
Chamam-na feminista. Revê-se nessa “condição”?
Trabalhei toda a minha vida com e para mulheres. Era muito jovem quando já tinha todos os ideais e causas do feminismo. Apesar de o feminismo ter mudado e de as pessoas não quererem usar a palavra, as causas continuam. Continua a haver muitas mulheres que estão submetidas e têm vidas miseráveis. Como mulher privilegiada que sou, porque tenho educação, saúde e recursos, posso ajudar. Então, sinto que a minha missão e a das mulheres como eu, sobretudo as mulheres mais velhas, que já criaram os seus filhos, é ajudar os seus irmãos no resto do mundo. Por isso concentrei-me nas mulheres e nas meninas com a Fundação [Isabel Allende, com sede nos EUA, fundada em 1996, em homenagem à filha Paula], angariando fundos. Por cada dólar que a filantropia investe em causas de mulheres, investe-se 20 dólares em programas para homens. Contudo, o dinheiro que se usa para ajudar as mulheres, ergue toda a família, ergue a aldeia, ergue a sociedade. É uma inversão muito importante.
Em que é que os seus livros a ajudaram?
Eu acredito que me ajudaram em tudo. Primeiro, a “Casa dos Espíritos” foi como uma tentativa de recuperar o Chile que eu tinha perdido depois da ditadura. Ajudou-me muito escrevê-lo porque pude recrear a memória que começava a perder-se enquanto estava no exílio. Escrevi “Paula”, quando a minha filha morreu, ainda jovem. Por sua vez, a dor não foi embora, mas pelo menos pude organizar o que se passou, contê-la em livro. Parece que antes de escrever o livro a dor invadia toda a minha vida e, depois, no processo de escrever e ordenar as recordações e os acontecimentos, pude geri-la melhor. Com isso, acredito que todos os meus livros provêm de uma experiência intensa e pessoal e quase sempre uma experiência muito dolorosa, ou uma paixão muito forte. Então, é uma verdadeira obsessão pela liberdade individual e também a liberdade colectiva, pela justiça. São coisas que sempre me apaixonaram. Então, são coisas que eu exorcizo com a escrita.
Uma escrita mais madura?
Mudei muito. Mas o mundo e a literatura também. Quando eu comecei a escrever, nos anos 80, era o boom da literatura latino-americana. Eram todos homens. E havia uma voz latino-americana. Isso já passou. Eu vivo em inglês. Vivo nos Estados Unidos, leio muita ficção americana. Influenciou-me porque mudou o meu estilo. Escrevo de uma forma muito mais directa, com frases mais curtas. Já não se usa o estilo demasiado barroco, que eu usava um pouco. Logo, creio que amadureci no sentido de que conheço melhor o ofício da escrita. Mas continuo a cometer muitos erros, continuo a ter muito medo de cada vez que começo um livro. Nunca me sinto segura, porque cada livro é diferente. E cada livro tem a sua forma de ser contado. Não serve a fórmula que aplicaste no livro anterior. Então existe essa angústia: serei capaz de escrevê-lo, ou não? E, também, a sensação de que há uma parte que é inspiração, outra parte que é trabalho, outra parte que é sorte. Sem a sorte, não sai.
É considerada uma referência da literatura latino-americana. Os seus livros fluem como relatos vívidos. Onde começa e onde acaba a ficção?
O boom da literatura latino-americana deve-se à censura. No Chile, por exemplo, como a ditadura silenciava os jornais, tivemos de começar a escrever livros para falar sobre o que estava a acontecer e como nos sentíamos. A ficção pode ser uma ferramenta para contar a verdade.
E o novo romance falará de que realidade?
Com ele fecha-se um ciclo. Não vou começar a escrever mais a 8 de Janeiro, como fazia até aqui. Faço-o desde 1981. Na altura estava a viver na Venezuela e recebi um telefonema do meu avô que estava a morrer. Escrevi-lhe, nesse dia, uma carta que se tornou depois o meu primeiro romance. Mas estou numa fase em que preciso ficar mais relaxada, estou farta desta vida militar de entrevistas, autógrafos e viagens.
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