Eu também acho que é um título improvável, como o acaso, a vida, o euromilhões, o jogo-do-bicho, a roleta russa, mas menos o resultado de eleições da câmara municipal do Porto. Vivemos de improbabilidades, mas não medimos as estatísticas, diariamente, porque a vida, parece, é como o mercado capital. Está sempre a oscilar. Altos e baixos. Um electrocardiograma.
Ainda assim, deveríamos perceber que o nosso universo amostral de possibilidades quotidianas, de mudança, certamente, e de episódios pouco prováveis, é um mais vasto espectro, do que aquele que consideramos. Basta estarmos atentos. E, neste caso, aos sinais. Devem ter sido divinos. Senão, vejamos. Viajava de metro, a caminho de casa, folheando o fim de "Diário de um Fescenino", do escritor brasileiro Rubem Fonseca (edição portuguesa da extinta Campo das Letras), ia mesmo na parte em que Rufus, o escritor, vive o drama de ser acusado de estupro, por isso as palavras obscenas exigem distância de outros passageiros, sob as minhas páginas, enquanto no lado oposto, num espaço de quatro lugares, um rapaz, muito cool, de calções largos, correia de prata com uma cruz cristã pendurado no peito, sandálias pretas, da moda, t-shirt aos quadrados, limpava os seus Ray-Ban, estilo police, com esmero e dedicação.
No colo, um livro de capa preta, talvez de pele, denso. A tiracolo, uma bolsa pequena, preta, igualmente, tal como o cabelo, raso, quase raspado. Foi a primeira vez que ele me chamou a atenção, mas logo segui de olhos distraídos, nessa observação diletante que os transportes públicos nos imprimem. Continuaria a ignorar o rapaz, não fosse ele sair na mesma paragem que eu, e os fiscais o pararem para averiguação da conformidade do bilhete andante. Eis que saio e ouço um som oco no chão. Apercebo-me de que um dos pins que tenho na carteira se soltou e resolveu mergulhar em apneia do granito. O rapaz, simpaticamente, ergue o pin libertinário, herege, e mo entrega com esmero e dedicação, como se tivesse salvo a vida a alguém.
Sorri e exclama:
- Ainda há gente honesta. Como é bom haver gente honesta!
A voz sai-lhe estridente e cavernosa, oscilante e um pouco medonha.
- Obrigado pela atenção.
- Vê como é bom haver gente honesta.
E nesta repetida afirmação o rapaz, claro, referia-se a ele, ao gesto dele. Agradeci de novo, mas ele colou em mim.
- Ainda há gente honesta.
- É verdade. Obrigada.
- Espere deixe-me dar-lhe uma coisa.
Eu só queria voltar para o Rubem Fonseca, nessa escrita que cola. Eu só queria que ele me deixasse em paz, porque aquela voz começava a irritar-me. Tentei esquivar-me.
- Não é preciso, obrigado. Deixe estar.
Como notasse a minha inquietude, o rapaz, defendeu-se.
- Não é o que está a pensar!
E eu não estava a pensar em nada, a não ser em Rubem e na pressa.
- Não é preciso, mesmo, obrigado.
- Espere, vou dar-lhe uma coisa para a proteger. Para ter sempre gente honesta ao seu redor.
Foi então que percebi que ele era mesmo muito baixo, esguio, e que a cruz do peito era um Cristo prateado.
- Vou-lhe dar Santa Filomena, uma oração, para a proteger. Esteja atenta.
- Não é preciso muito obrigado.
E nisto comecei a atravessar a linha do metro. Ele ainda teve tempo de me alcançar a mão e colocar o panfleto da santa na mão.
- Obrigado.
Coloquei no meio do livro: uma santa, num livro obsceno.
- É que eu sou padre, sabe.
E agarrou a bíblia ainda mais forte debaixo do braço. Perguntou-me onde ficava o Padrão da Légua. E, no fundo, eu acho que lhe devia ter dado o meu Rubem Fonseca. Para o proteger, claro. E nada melhor do que o diário de um fescenino.
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