terça-feira, julho 31, 2012

Leituras em dia

O mundo de Sarah Kane é conturbado, incómodo, deixa-nos um pouco pesados e complacentes com um universo para onde temos de mergulhar quase numa apneia involuntária, mas há qualquer coisa na acidez e no caos desta escrita que me faz folhear, sem pudor, medo, ou sequer intromissão de pensamentos pungentes ao modo de vida desta escrava literária. Ando, por isso, empenhada nesta Psicose, nas Ruínas, ou destroços do pensamento dela, em ruptura permanente, para entender a citizen Kane, desaparecida tão precocemente de um talento. A primeira vez que ouvir falar dela, foi há dois anos, numa aula de Estética Literária, da professora Joana Matos Frias, quando, em 2010, como ouvinte curiosa, me propus assistir a algumas aulas do Mestrado em Cultura e Interartes da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Falávamos, precisamente, de estética, mais concretamente da Filosofia da Estética, e permeávamos algo como o espanto que um tsunami, por exemplo, pode infligir em nós. Um tsunami é um acontecimento e por isso não deixa de ser belo, ainda que catastrófico. Sarah Kane tem esse efeito: de um maremoto, destrutivo e paradoxalmente belo. Hei-de voltar a isto, quando regressar às minhas notas dessas aulas.
Na maioria das livrarias, "Teatro Completo" está esgotado. Mas aqui ainda é possível comprar obras da dramaturga britânica. Graças à Sandra Claro, outra apaixonada pela literatura, ando com a Sarah Kane no colo, num empréstimo rápido, antes que ela fuja de vez para Paris. 

Rubem Fonseca, Padres e Santa Filomena [#prosas bárbaras]




Eu também acho que é um título improvável, como o acaso, a vida, o euromilhões, o jogo-do-bicho, a roleta russa, mas menos o resultado de eleições da câmara municipal do Porto. Vivemos de improbabilidades, mas não medimos as estatísticas, diariamente, porque a vida, parece, é como o mercado capital. Está sempre a oscilar. Altos e baixos. Um electrocardiograma. 

Ainda assim, deveríamos perceber que o nosso universo amostral de possibilidades quotidianas, de mudança, certamente, e de episódios pouco prováveis, é um mais vasto espectro, do que aquele que consideramos. Basta estarmos atentos. E, neste caso, aos sinais. Devem ter sido divinos. Senão, vejamos. Viajava de metro, a caminho de casa, folheando o fim de "Diário de um Fescenino", do escritor brasileiro Rubem Fonseca (edição portuguesa da extinta Campo das Letras), ia mesmo na parte em que Rufus, o escritor, vive o drama de ser acusado de estupro, por isso as palavras obscenas exigem distância de outros passageiros, sob as minhas páginas, enquanto no lado oposto, num espaço de quatro lugares, um rapaz, muito cool, de calções largos, correia de prata com uma cruz cristã pendurado no peito, sandálias pretas, da moda, t-shirt aos quadrados, limpava os seus Ray-Ban, estilo police, com esmero e dedicação. 

No colo, um livro de capa preta, talvez de pele, denso. A tiracolo, uma bolsa pequena, preta, igualmente, tal como o cabelo, raso, quase raspado. Foi a primeira vez que ele me chamou a atenção, mas logo segui de olhos distraídos, nessa observação diletante que os transportes públicos nos imprimem. Continuaria a ignorar o rapaz, não fosse ele sair na mesma paragem que eu, e os fiscais o pararem para averiguação da conformidade do bilhete andante. Eis que saio e ouço um som oco no chão. Apercebo-me de que um dos pins que tenho na carteira se soltou e resolveu mergulhar em apneia do granito. O rapaz, simpaticamente, ergue o pin libertinário, herege, e mo entrega com esmero e dedicação, como se tivesse salvo a vida a alguém. 

Sorri e exclama:
- Ainda há gente honesta. Como é bom haver gente honesta!
A voz sai-lhe estridente e cavernosa, oscilante e um pouco medonha.
- Obrigado pela atenção.
- Vê como é bom haver gente honesta.
E nesta repetida afirmação o rapaz, claro, referia-se a ele, ao gesto dele. Agradeci de novo, mas ele colou em mim.
- Ainda há gente honesta.
- É verdade. Obrigada.
- Espere deixe-me dar-lhe uma coisa. 
Eu só queria voltar para o Rubem Fonseca, nessa escrita que cola. Eu só queria que ele me deixasse em paz, porque aquela voz começava a irritar-me. Tentei esquivar-me.
- Não é preciso, obrigado. Deixe estar. 
Como notasse a minha inquietude, o rapaz, defendeu-se.
- Não é o que está a pensar!
E eu não estava a pensar em nada, a não ser em Rubem e na pressa.
- Não é preciso, mesmo, obrigado.
- Espere, vou dar-lhe uma coisa para a proteger. Para ter sempre gente honesta ao seu redor.
Foi então que percebi que ele era mesmo muito baixo, esguio, e que a cruz do peito era um Cristo prateado.
- Vou-lhe dar Santa Filomena, uma oração, para a proteger. Esteja atenta.
- Não é preciso muito obrigado. 
E nisto comecei a atravessar a linha do metro. Ele ainda teve tempo de me alcançar a mão e colocar o panfleto da santa na mão.
- Obrigado.
Coloquei no meio do livro: uma santa, num livro obsceno.
- É que eu sou padre, sabe. 
E agarrou a bíblia ainda mais forte debaixo do braço. Perguntou-me onde ficava o Padrão da Légua. E, no fundo, eu acho que lhe devia ter dado o meu Rubem Fonseca. Para o proteger, claro. E nada melhor do que o diário de um fescenino.



Um Porto por dia [.#6]

Uma das minhas casas favoritas no Porto: o Centro Português de Fotografia. Ou, como foi outrora chamado, o Hotel Mira-Patos, a prisão, onde esteve encarcerado o escritor Camilo Castelo Branco, e onde hoje se celebra uma das maiores escritas do mundo: o pincel da luz, a fotografia. 

Um Porto por dia [.#5]

Papel plasmado, num dos vidros de um dos muitos restaurantes da Invicta. Agora já sei como se diz leitão em inglês. Elucidativo, até porque a Santa Wikipedia não deixa dúvidas. "suckling pig (or sucking pig[1]) is a piglet fed on its mother's milk (i.e., a piglet which is still a "suckling"). In culinary, a suckling pig is slaughtered between the ages of two and six weeks." Ainda assim, não deixa de ser, ora, uma coisa fescenina. 

sexta-feira, julho 27, 2012

A Literatura, liberou geral



"Sou todo um harém matriarcal. Poliândrica, poligâmica, heterossexual, homossexual. Poliamor, portanto, para  simplificar. Sou uma democracia lato sensu neste tipo de relação. Porém, devo exercitar o mea culpa no seguinte: sou pouco tolerante com a superficialidade. É que relação, qualquer seja, tem que ter, na matemática do mínimo  denominador comum, um bom papo, risada, observação participante e até um q.b. de discordância para agregar  alguma coisa no outro. Seria um saco ficar concordando o tempo todo: sim, meu amor; desliga-você-não-você-você!
Logo, para mim, isto é termômetro de irascibilidade: frases-cliché, vaidades vãs, indiferenças. Me dá uma certa  urticária. Na hora de responder, viro uma fofa-blasé. E ser fofa-blasé é um problema, porque há algo em nós que  delata que, para não sermos totalmente desagradáveis, estamos meio que pisando palco com cadafalso. E se a vida  é um grande palanque, sabemos, então nossa máscara é molde personalizado para essa-ou-aquela pessoa, que mais  cedo ou mais tarde, há de desgastar."

Continuar a LER: Poliamor no blogue da editora brasileira Cosac Naify

Um Porto por dia [.#4]

O mar parece mais perto, porque as gaivotas dormem na cidade. Grasnam e revolvem caixotes do lixo como pandilhas competentes. Bicam, rasgam o plástico em três golpes marciais, e depois pipilam regozijadas por contribuir para a imundície coletiva. Chegam a comer restos de carne e a fazer recreio com embalagens de plásticos. Parecem abutres pós-modernos. Parecem mutantes de tão grandes e de meter medo. Saem do mar para a cidade, como mendigas, porque o peixe não se lhes chega. 
Ao fim da tarde é ver os sacos estraçalhados, a misturar odores de vizinhos, de moradores incautos que os deixam, frágeis, desapropriados e mal atados, nos passeios, no rês-do-chão das gigantes caixas verdes que guardam os nossos detritos. Terreno maculado, poluto, pincelado com as tintas ácidas da matéria em decomposição.
A velha costuma ajudar à orgia escatológica, tal qual um alcatraz ávido a debicar. Revolve a lixeira, indiferente a quem passa e a olha com asco burguês. Ela usa uma bengala para se apoiar; às vezes serve de vara exploradora naquela sujidade. Tem o cabelo lavado aparentemente lavado, pela humidade visível, os fios grisalhos, uns óculos desajeitados; saia remendada e uma combinação bege por baixo do véu feminino. Manuseia lixo como um cozinheiro manuseia os ingredientes para o jantar; ou como o oleiro acaricia o barro; ou a costureira a máquina para a bainha. 
Enquanto ela o faz, o bairro acontece na rotina, a produzir o lixo que ela - e as essas aves marinhas, amanhã - estarão a chafurdar. Vós ainda não sabeis, ou não vos lembrastes, mas o lixo é uma política entranhada nos dias, uma ditadura liberal, uma servidão voluntária, outrora triunfo de Porcos, hoje triunfo das marias-velhas, gaivotas-mutantes. 

quinta-feira, julho 26, 2012

Um Porto por dia [.#3]



Pífaros leiteiros e vasos naturais [#literatura crónica]

"Rosa sai da água e vê o pastor. Ri-se. Pega nas roupas, corre para ele, e Ari, a cheirar a carneiro e a queijo e a azeite, agarra-a. Sente a pele dela, olha-a nos olhos e dá-lhe um beijo desajeitado. Os dentes batem uns nos outros, e ela ri-se. Ele fica um pouco irritado, agarra-a pela cintura e fá-la deitar-se na terra. Rosa põe as roupas debaixo da cabeça e abre as pernas. O pastor deita-se em cima dela, que já não ri. Arquejam e misturam os seus cheiros salgados com as margaridas silvestres que despontam corajosas debaixo dos corpos de ambos. O cheiro de azeite do queijo ficará como memória indelével daquela manhã, e de cada vez que Rosa comer ao almoço lembrar-se-á do pastor que a tomou esmagando margaridas. "
in Jesus Cristo bebia Cerveja, Afonso Cruz, Alfaguara, 2012

quarta-feira, julho 25, 2012

O ponto G está na orelha


LIVROS

Isabel Allende: "Continuo a ter medo ao começar um livro"

por Vanessa Rodrigues, Publicado em 10 de Agosto de 2010   (no jornal i)


É mandona, ainda erra "muito", escreve poesia erótica e diz que o ponto G está na orelha. Foi um dos nomes maiores da Festa Literária Internacional de Paraty, e conversou com o i sobre o Chile e as suas letras

Sentou-se altiva na cadeira do palco da tenda dos autores da 8.a Festa Literária Internacional de Paraty, FLIP, para falar na mesa "Veias Abertas" (o mesmo título do livro de Eduardo Galeano, que conta com prefácio de Allende). Em menos de duas horas, a escritora chilena Isabel Allende trocou a camisa de organza que usara na conferência de imprensa por uma écharpe de cores quentes, por cima do negro do vestido. A mulher-escritora diz que é mandona, detesta eventos sociais e acha que vai ser "uma velha louca". Comporta-se como uma lady. Tem um olhar grande e doce; melancólico para falar do passado. Gosta de escrever poesia erótica. 

Na FLIP, à conversa com o jornalista e escritor brasileiro Humberto Werneck, embora tenha esmiuçado o humor para responder às questões sobre a vida privada, na última quinta-feira, poucos perceberam que o exercício lhe foi, de certa forma, doloroso. A voz tremeu, subtilmente, algumas vezes. Nessas alturas, agarrava-se à piada e à ironia para se rir de si e da vida. Ou evocava a história de amor com o actual marido, o escritor norte-americano, Wiliam C. Gordon, que a acompanhou à FLIP. Ele é uma espécie de lugar afectivo a que ela recorre, com carinho. Estão juntos há 23 anos. É talvez essa a mesma função que cumprem as cartas íntimas que mantém com a mãe, de 90 anos, e que estão guardadas na sua casa nos Estados Unidos. Entusiasmado, Werneck desafiou-a a publicá-las. Allende desmarcou-se. A mãe não permitiria, e muito menos lhe escreveria o que escreve, naquele "espanhol literário perfeito", se soubesse que seriam lidas por outros. "Somos muito fofoqueiras, dizemos mal de muita gente", gracejou. Hoje, a escritora de "Ilha Debaixo do Mar", lançado no final do ano passado em Portugal, e só agora publicado no Brasil, usa mais o Skype e o email para responder à mãe. Reconhece que, por isso, "muitas coisas se perdem". Foi, precisamente, numa vertigem que o poeta Pablo Neruda a deixou, em 1973, quando ela era jornalista. De gravador novo na carteira, almoçou com o Nobel da Literatura na Isla Negra, onde ele morava. Na hora de gravar, ele desconcertou-a: "Jamais aceitaria que me entrevistasses! És a pior jornalista deste país. Tu mentes o tempo todo. Passa a dedicar-te à literatura e todos os teus defeitos serão virtudes." Obedeceu, deve--lhe, de certa forma, o facto de se ter consagrado como escritora. Conheceu o actual marido numa digressão. Voltou para o Chile a suspirar. Teve de voltar a vê-lo. "Ele começou a contar-me a história da sua vida e eu apaixonei-me por essa história, é por isso que eu costumo dizer que o ponto G está na orelha." Até hoje ele não terminou de contar a história.Meia hora antes da entrevista que a escritora chilena Isabel Allende deu em exclusivo ao i, durante a 8ª Festa Literária Internacional de Paraty, fez uma sessão fotográfica para uma revista espanhola de celebridades. Sorriu muito, mas, a cada clique, respirava de alívio na esperança de que fosse o último. Esta semana está na Jamaica, também a trabalho. Se o sucesso dos livros a sufoca, por outro, escrevê-los, diz, é encontrar a liberdade. A mesma que diz usar “para cambiar el mundo”, melhorando a condição das mulheres

Chamam-na feminista. Revê-se nessa “condição”?
Trabalhei toda a minha vida com e para mulheres. Era muito jovem quando já tinha todos os ideais e causas do feminismo. Apesar de o feminismo ter mudado e de as pessoas não quererem usar a palavra, as causas continuam. Continua a haver muitas mulheres que estão submetidas e têm vidas miseráveis. Como mulher privilegiada que sou, porque tenho educação, saúde e recursos, posso ajudar. Então, sinto que a minha missão e a das mulheres como eu, sobretudo as mulheres mais velhas, que já criaram os seus filhos, é ajudar os seus irmãos no resto do mundo. Por isso concentrei-me nas mulheres e nas meninas com a Fundação [Isabel Allende, com sede nos EUA, fundada em 1996, em homenagem à filha Paula], angariando fundos. Por cada dólar que a filantropia investe em causas de mulheres, investe-se 20 dólares em programas para homens. Contudo, o dinheiro que se usa para ajudar as mulheres, ergue toda a família, ergue a aldeia, ergue a sociedade. É uma inversão muito importante. 

Em que é que os seus livros a ajudaram?
Eu acredito que me ajudaram em tudo. Primeiro, a “Casa dos Espíritos” foi como uma tentativa de recuperar o Chile que eu tinha perdido depois da ditadura. Ajudou-me muito escrevê-lo porque pude recrear a memória que começava a perder-se enquanto estava no exílio. Escrevi “Paula”, quando a minha filha morreu, ainda jovem. Por sua vez, a dor não foi embora, mas pelo menos pude organizar o que se passou, contê-la em livro. Parece que antes de escrever o livro a dor invadia toda a minha vida e, depois, no processo de escrever e ordenar as recordações e os acontecimentos, pude geri-la melhor. Com isso, acredito que todos os meus livros provêm de uma experiência intensa e pessoal e quase sempre uma experiência muito dolorosa, ou uma paixão muito forte. Então, é uma verdadeira obsessão pela liberdade individual e também a liberdade colectiva, pela justiça. São coisas que sempre me apaixonaram. Então, são coisas que eu exorcizo com a escrita.

Uma escrita mais madura? 
Mudei muito. Mas o mundo e a literatura também. Quando eu comecei a escrever, nos anos 80, era o boom da literatura latino-americana. Eram todos homens. E havia uma voz latino-americana. Isso já passou. Eu vivo em inglês. Vivo nos Estados Unidos, leio muita ficção americana. Influenciou-me porque mudou o meu estilo. Escrevo de uma forma muito mais directa, com frases mais curtas. Já não se usa o estilo demasiado barroco, que eu usava um pouco. Logo, creio que amadureci no sentido de que conheço melhor o ofício da escrita. Mas continuo a cometer muitos erros, continuo a ter muito medo de cada vez que começo um livro. Nunca me sinto segura, porque cada livro é diferente. E cada livro tem a sua forma de ser contado. Não serve a fórmula que aplicaste no livro anterior. Então existe essa angústia: serei capaz de escrevê-lo, ou não? E, também, a sensação de que há uma parte que é inspiração, outra parte que é trabalho, outra parte que é sorte. Sem a sorte, não sai.

É considerada uma referência da literatura latino-americana. Os seus livros fluem como relatos vívidos. Onde começa e onde acaba a ficção?
O boom da literatura latino-americana deve-se à censura. No Chile, por exemplo, como a ditadura silenciava os jornais, tivemos de começar a escrever livros para falar sobre o que estava a acontecer e como nos sentíamos. A ficção pode ser uma ferramenta para contar a verdade.

E o novo romance falará de que realidade?
Com ele fecha-se um ciclo. Não vou começar a escrever mais a 8 de Janeiro, como fazia até aqui. Faço-o desde 1981. Na altura estava a viver na Venezuela e recebi um telefonema do meu avô que estava a morrer. Escrevi-lhe, nesse dia, uma carta que se tornou depois o meu primeiro romance. Mas estou numa fase em que preciso ficar mais relaxada, estou farta desta vida militar de entrevistas, autógrafos e viagens.

Face quê?

A Cronica Luna Samba, agora também está no facebook. Anda com modernices, por AQUI

Um Porto por dia [.#2]


terça-feira, julho 24, 2012

segunda-feira, julho 23, 2012

Acordar num outro planeta, o corpo



Hoje estou particularmente atenta às pessoas. Alerta, para ser mais rigorosa. Porque me incomodam. Como se tivesse acordado com pele hiper-sensível, que se estende aos olhos, às mãos, aos ouvidos, ao nariz, aos estímulos eléctricos que chegam ao cérebro. E tudo isto me dá cansaço, me tira energia, me atira para uma letargia que não quero sentir. Estou zonza. Desperta a tudo. E cada gesto é um golpe de que me tento defender. As pessoas que fumam, as que atravessam a rua, as que brincam com crianças, as que atravessam a rua, de novo, as que passam de carro, vão e voltam, correm, riem, saltam, namoram, dão passos largos e largas passas num cigarro, no burburinho, nas falas sussurradas que se tornam ruído, seguram tabuleiros com bolos de chocolate fartos, se beijam... 

Tudo em simultâneo, enquanto vidas individuais acontecem no coletivo. É um frenesim concomitante, como todos os dias, quotidianamente renovado, vivido, como animais pavlovianos. Mas hoje algo acontece e eu não sei o que aconteceu. Escrevo tudo isto com uma certa tontura. Tontura de clima: este calor? Será o ar que está impuro? A água contaminada, o queijo estragado, a maçã azeda; e não senti?

Penso isto, e as pessoas passam, todos estranhos, os outros, como o são as más companhias para os nossos pais, os filhos dos outros, nunca nós, e ocorre-me a conversa com o Rubim: o amor, o medo, a gratidão, as vidas obscuras de cada um. E eles a pensar que tudo isto, este nada, não vale a pena. Ocorre-me isto e penso, inevitavelmente, em Sassetti. Eu não quero pensar nele, mas penso muitas vezes. Penso neste peso irreal que nos transcende, concreto da fugacidade dos dias, do tempo. Penso na alegria, na pessoa feliz que sou, grata e em toda a impossibilidade de explicar tudo, na aceitação de factos; no bosão de Higgs, na inutilidade dos objetos, na inutilidade das revistas cor-de-rosa, no recreio mediático sobre a Licenciatura de um Ministro e na capa desta semana de uma revista reputada: os EUA morreram? Eu sinto que tudo isto já aconteceu, outrora, quando não existíamos, e os nossos velhos sonhavam com i-phones. Voltará a acontecer, quando não existirmos, e alguém há-de pensar que o futuro já aconteceu.

Fico com a sensação de que todas estas preocupações são universais, já foram (não seríamos nós, seres bizarramente excêntricos para os nossos antepassados?), servem-nos de mistelas high-tech e ilusões capitalistas e entorpecem-nos (e nós deixamos) e, também por isso, falhamos o verdadeiro pulo humano: saber como estarmos perto de nós, da nossa natureza e transpor isso para quem virá, não sei, para que faça algo que realmente valha a pena construir, para que saibamos por que razão isto que sinto é um lento e constante dejá-vù. E que construir alguma coisa signifique não deixar que enquanto uns se deitam, por agora, nas praias de Verão, deste lado do globo, outros se deitam em córregos de sangue, numa Síria tão perto.

Sei que tudo isto até aqui soa a filosofia de botequim-deve sê-lo de verdade-, talvez porque todos os gestos me incomodam e há suspensões do pensamento que me levam a considerar que se há um fim, zás, agora estou daqui a pouco não estou, ou o que o Rubim diz, por outras palavras, ser o estado do não garantido - por que razão temos um ciclo transitório, existimos. Eu sei, todo este latim não vale nada, que bem posso ter acordado num outro planeta. Pior, no entanto, é perceber que esse mesmo planeta, é o meu próprio corpo. Eu juro que não ando a ler Kafka, muito menos a tomar Ayhuasca. 

quinta-feira, julho 19, 2012

Onde está o Rei dos Queijos?

Sempre que eu aparecia para um café ao fim da tarde a senhora de cabelo curto perguntava-me:
-A menina já voltou do Brasil? Como tem sido lá?
E depois trazia-me o café e a fofa Clarinha para acompanhar, que eu degustava sempre com a mesma lentidão de quem prova pela primeira vez. Lugar exíguo, espelhos empoeirados, ferros oxidados, vitrines a esconder garrafas de vinho do Porto e o whiskey nunca abertos e que, com certeza, o tempo e o ar avinagraram. Havia aquele som metálico das moedas na máquina registadora, uma cadência hipnotizante e que remotamente nos transportava para tempos onde a polifonia dos telemóveis não era sequer uma possibilidade. Sentia-me em casa, por ali. Abria o caderno e ficava a ouvir, numa bisbolhotice quase imposta pelo pouco espaço daquele lugar familiar. Cumprimentava sempre o senhor de óculos fundo de garrafa à entrada, mas ele nunca me reconhecia. Era simpático por natureza. Um olá menina não chegava a ser indiferente, mas era gratuito e relativo. Pairava no ar. A certa altura, em tardes com mais calma, ficava a saber a vida de uns e outros. Que a velhice é um estado de auto-comiseração para uns; um estado precoce para outros, uma simpatia para outros. Deixava-me estar. Agora que faço as contas, faz mais de dois anos que não lá vou. Há uns meses tentei levar várias pessoas aquele canto especial no centro do Porto, mas deparei-me sempre com o mesmo bilhete na porta: "Fechado por motivos de saúde". Não consigo perceber que doença prolongada será esta que acometeu o Rei dos Queijos. Anda esquecido, faz-me falta, faz falta ao Porto. 

quarta-feira, julho 18, 2012

Filmes, metro a metro e eu dentro dos frames

Nunca estive tão envolvida com os frames como desta vez. Ando dentro deles, parece. É isto: vilanagem, esta é a minha nova aventura: a sétima arte, em modo curta. Com argumento e realização de Rui Pilão, direção de fotografia de António Morais, contracenando com a pequena Sofia e Artur Miguel Moreira Rubim; maquilhagem de Marta Ramalho. Espreitem. A Ju Vaz é assistente de câmara e o Francisco Lobo assistente de realização.https://www.facebook.com/pages/Desespero/467881563222629


sábado, julho 14, 2012

Hilda, camas estranhas

Com corpo a rodar mundo. Com as costas moldadas às noites cálidas, frias, mordazes, cautas, perigosas e de sexo. Corpo na rede. Bunda em lençóis brancos, a olhar tectos azuis, azul-cueca, sofás, colchões fofos, varandas, chão, areia, barco, assento de avião, ônibus, carrinha, motéis, camas de hotéis duvidosos, sem janelas, sofás extensíveis-cama, bem acompanhada, no teu corpo, carne-na-carne, mamilos almofada, barriga repouso de mão, cadeiras, mesas, camas de solteiro, colchões no chão, taco-a-taco, duros, cimento, no teu colo, no colo deles, nas tuas mãos, no teu regaço, no arpoador, na rocha, colcha de nafetalina, solteira, de casada, no sótão, águas-furtadas, beliches, no mosteiro, na pousada, guest-house, acampada, debaixo da tenda, debaixo da árvore, no tecido cálido do teu véu de derme, na carpete, no azulejo, sempre em cama alheia, na dele, dela, dele, dela, dele, dela, duras, tão duras de solteiras, casadas, tão atadas, poltronas, divãs, sagradas, benzidas, amaldiçoadas. Só durmo em camas estranhas e começo na minha, que o corpo foi feito para voar e dormir em nuvens.

quarta-feira, julho 11, 2012

ardo maria, ai

Parece que as musas vão despir Camões, outra vez. Esta quinta-feira, 12 de julho, a performance ardo maria, ai (teatro, música e poesia) será às 17h, no Largo São Domingos, em frente à ESAP. Um fim de tarde com traição, amores e desamores, perdão, mil mulheres, suspiros, Lianor e pífaros leiteiros, dizem as más línguas. Venham, venham que nós vamos lá estar a encantar homens e mulheres, a seduzir a chama bruxuleante do Amor.