A minha avó sempre me ensinou que com a saúde não se brinca, e cheguei mesmo a acreditar que as aftas que ela me talhou invocando, à noite pela janela, a “estrelinha da banda de além”, numa lengalenga de outrora, fez mais milagres do que o pincel anti-séptico.
Depois, como as recomendações são sempre geracionais, graças às da minha mãe, há sempre um kit na carteira para males menores, como dores de barriga inesperadas e um paracetamol para dar um “xô” naquela moinha da cuca. Sou quase uma farmácia ambulante.
A minha tia, que foi bioquímica, também tem uma dica útil para viajantes: a caixa vazia de um rolo fotográfico, com algodão embebido em álcool, é uma maneira económica de ter sempre um desinfectante à mão. Tudo controlado, portanto.
Mas o filme é outro quando viajo. Um trailer de acção. Não tenho seguro de saúde e lembro-me sempre do assunto em vésperas de viajar. Esse aparente desleixo deve-se à minha infalível sorte (qual MacGyver), quando a saúde se lembra de brincar comigo. Provas: há uns anos, na República Checa, tive uma aguda e preocupante dor de cabeça. Estava em Brno, região da Morávia do Sul, em casa da minha amiga Adriana. Ginasta e compositora de música clássica. Nessa altura, não houve melodia que acalmasse a impertinente maleita, nem analgésico que a aniquilasse. Só me apetecia fechar os olhos: que me deixasse sossegada, a desfrutar a minha insustentável leveza do ser. Até que, sabemos: o namorado da Adriana é neurologista. Uma consulta (gratuita). Alguns exames (gratuitos).
E um diagnóstico caricato:
- “Experimente tomar café. Vocês não tomam muito lá em Portugal? É falta de cafeína. Não tens nada!”
E ribomba uma gargalhada.
Tomo café, um milagre: a dor foi pregar para outra freguesia, a norte, a sul, quem sabe; e ainda hoje deve andar pelo mundo.
Outro norte: Amazónia brasileira. Um calor húmido de empapar a pele. Redescobrimos poros por onde suar. A água do corpo vai-se rapidamente. Desidratamos fácil, se não nos cuidarmos. É, por isso, que os 70% de água em nós se vão pelo suor e não pela fisiologia.
Não me cuidei e, sem me aperceber, estava já com a língua embranquecida e com uma infecção no corpo. Dores terríveis, ardentes, agudas, naquele calor-inferno. E isto é muita sorte: estou no médio Amazonas, há um rio imenso, comunidades isoladas; médicos são bicho extinto por aqui e o hospital mais próximo fica a dois dias de viagem. Para acalmar tamanha dor: haja mezinhas amazónicas; ou chamemos pelo rádio um helicóptero para evacuação. Não é caso para tanto.
A sorte, agora, sim, livre de ironia: estou a bordo de um navio-hospital. Em menos de meia hora, no meio do rio Tapajós - e rodeada de secas margens, que na noite seguinte iriam atrair uma praga de gafanhotos carnudos ao barco-, fui consultada, fiz exames, recebi o resultado, fui medicada, e ultimada a beber um litro de água, de imediato. Tudo pro bono. O resto seria repouso embalado pelo rio. E água, muita água porque eu estava como as margens.
Ao contrário das de Manaus, daqui subindo Rio Amazonas. Cheias. Um mês depois e a saúde preguiçosa: que dores de dentes são estas que não me deixam comer? Um dia, dois dias e não há analgésico milagroso. Ocorre-me que o meu amigo Godinho já me falara de uma amiga em Manaus que é dentista. Tem consultório: top. Leidiana atende. Leidiana recebe a Vanessa. Leidiana faz limpeza de dentes e um laser milagroso para atenuar a dor e tratar do esmalte desgastado, que pelos visto causa tanta sensibilidade. E caso resolvido, dor exterminada com Leidiana.
Tiramos agora o “Leidi” ao nome e vamos à Ana, outra amiga. Rio de Janeiro. Estamos em pleno Carnaval, bloco de rua, serpentinas e um sol tropical. “Lalaiálaía!” E Carnaval é Brasil em suspenso. E Brasil em suspenso é Samba. E assim temos de pular, dançar, andar de bairro em bairro, samba em samba, marchinhas, uma semana inteirinha.
Isto é para duros, pós-doutorados em boémia carnavalesca. Eu sou caloira, ando de sabrina no pé a pular carnaval e descubro que tenho lordose. Ai! Estas dores que me matam na lombar, ao fim do terceiro dia! Fraquinha! Faltam dois e Carnaval que é Carnaval não admite interrupções. Uma baixa assim na minha primeira vez?
Na manhã seguinte, sem me aguentar, a Ana propõe irmos ao hospital, a 500 metros de casa dela. Ventura!!! Levo analgésico na veia, um “flirt” do enfermeiro que acho um máximo que eu esteja mascarada de boneca de trapos, e uma recomendação da médica: com umas horas de descanso e medicação, você está pronta para mais uns pés de samba. Queria ela dizer que, afinal, eu podia ir brincar com a saúde. Começo a desconfiar que o corpo sabe quando deve ficar doente. Se fizesse um seguro de saúde, calhando não teria tanta sorte, ou, quem sabe nada me aconteceria. Assim de repente, já que saúde não é problema, acho melhor é dar ouvidos a outro conselho sábio da minha avó: ter juízo!
(Crónica publicada na Fugas, Público, 13 Agosto 2011)
2 comentários:
Gostei.... muito!
Que bom Cris! Muito Obrigada. Beijo grande!
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