Eu já estava atrasada, embora ainda tivesse tempo. Linha vermelha, linha amarela e tudo seria mais fácil para chegar à Senhora de Verde. Embora para ser verde tenha de misturar amarelo e ciano e não amarelo e vermelho. Por isso, olhei para o céu, à procura de um ciano technicolor: estava cobalto, nublado, a ameaçar uma carga de água. Nada de azul fotográfico.
Estava atrasada e, assim, apressei-me no Battery Park, em Nova-Iorque.
Não era este o plano para um pedaço das 24 horas, mas, sabia, que se não o fizesse naquele dia, alguma preguiça poderia depois tomar conta deste corpo para outras moradas mundanas e nunca mais olharia para o céu para ver aquele espectro esverdeado que aparece nos filmes, nos guias, num imaginário colectivo de um imperativo “must see”.
Parecia tudo muito fácil, mas o périplo ainda era empreitada digna de um Indiana Jones amador. A porta estava ali, o barco-ferry ainda ia partir – e tudo estava a ser demasiadamente fácil, até que sem bilhete na mão nada feito.
Era a primeira advertência, esta, a da impaciência de um guarda bonacheirão a julgar que me fazia de tonta a entrar à socapa. O julgamento implacável estava errado: era uma “tontaria” minha, essa, a da ignorância da bilheteira.
Passos atrás e voltei para o edifício que parecia uma mini-fortaleza Walt Disney e eis que a fila veio com a segunda advertência: não haveria, para aquele dia, visitas à coroa da senhora. Como apenas queria a viagem para chegar à ilha e encontrar os rapazes dispensei os headphones com a tradução e toda um bê-a-bá mimetizado sobre aquela que é a Liberdade a iluminar o Mundo. E o mundo bem precisa de uns quantos watts para sair da cegueira. Embora a cegueira branca possa ser mais do que iluminada e o problema não seja, pois, de luz, mas antes de lucidez do cérebro. E essa meus caros, sabemos, não há watts nem lume – nem fogo, nem filamento lúcido - que a salvem da escuridão da caverna. E naquele dia, já o disse, estava nublado, a ameaçar nuvens à carga. E quando as nuvens entram na palete de cores do dia, temos de apelar ao mais ínfimo instinto primitivo para ler os sentidos. E o sentido era para norte, mas antes de lá chegar haveria raio-x, uma fila e um polícia a segurar-me o isqueiro (nas trevas não ficaria), para mo devolver depois de o meu corpo transitar entre electróns e átomos, em emissões electromagnéticas de natureza semelhante à luz visível. O xis do raio é qualquer coisa assim: é energia dos fótons. À carga, portanto, antes que as nuvens venham.
Havia calor, abafado. E muito humano, porque o último ferry já partira e o próximo ainda demoraria. Em pé, para garantir fila. E gente, como em todo o lado, a tentar furá-la, quando as cancelas se abrem e o gado (perdão, os humanos) se apressam para arranjar lugar para chegar à Green Lady.
Escada acima e um lugar onde ninguém queria é onde a minha bunda repousaria. Mas, pelos meus cálculos, mal o ferry zarpasse seria coisa cobiçada. Não a bunda, o lugar. O lado direito, já que quando o barco guinar, essa imóvel senhora ficaria a estibordo. Não era esta profecia difícil de se fazer: era coisa de se prever. Hordas de gente faminta por fotografias, afinal, o must see estava muito mais perto do que alguma vez estivera.
Ei-la: verde, oxidada e imponente a olhar um nada, porque ser inanimado nada olha, e é como se prescindisse da lucidez para existir. Mas, se visse, haveria de ver mais longe do que qualquer um de nós.
Em menos de meia hora aportavamos.
“Quando saires, vai em direcção à bandeira. Estamos por aí”, escreveu o Marco.
E eu fui e esse por aí era um pouco, um pouco com sanduiche manhosa e meio litro de Coca-Cola. Juntei-me à tribo, que ainda não comera.
E a ilha da senhora de verde é um fantasma. Um fantasma porque à noite, esse vulto colossal deve fazer sombra às centenas de gaivotas que ali devem ir sossegar para reproduzir, comer, amar. As gaivotas amam? Pelo menos aquelas que estavam no corrimão do porto, entretidas a bicar-se uma à outra deveria querer, de alguma forma, provar que os beijos podem ser bicadas violentas com amor. Mas o amor também pode ser isto: à distância.
E amar Nova-Iorque à distância é vê-la da ilha da Green lady. Um recortado no horizonte, alto e baixo, bicudo e quadrado, a arranhar o céu, e a amar as margens. E amar pode ser cinzento: porque é essa a cor que tenho para Nova-Iorque, o cinzento. O cinzento-mistério; o cinzento-triste; o cinzento- atarefado, sem tempo, mas pujante, o cinzento-poluição que a alma humana, as gentes, tratam de colorir com vida, vivências e tanto pulsar. A pulsação é tão acelerada, que não chegamos a perceber o que é o cinzento, mesmo que a chuvas nos venha turvar os sentidos e o olhar. Foi o que aconteceu. Gotejavam lágrimas do céu, no instante em que amavamos à distância.
No instante em que nos enamorávamos das ondas rasgadas pelos vento, do recorte de uma cidade que realmente está à janela, quando a olhamos da ilha da Senhora de Verde. Há aqui uma espécie de amor sol-e-lua. Um amor impossível. Não bastava ele ser à distância para se tornar impossível, porque Manhattan não seria tão bela, como vista daqui, despida. E a Estátua da Liberdade só ganha realmente fôlego, quando olhada da cidade que a ama e pela qual ela empenha a chama.
Desejei, por isso, subir à coroa impossível, sem ninguém, quando a ilha se transforma em espectro silencioso: e o silêncio pode ser apenas dentro de nós, com o bater das águas, o bicar das gaivotas. E foi quando apanhei o ferry de regresso a Manhattan que vi como tudo isto era belo. Às vezes, precisamos da distância para anos apaixonarmos, para acharmos beleza na inaudita improbabilidade, à medida que o ferry se afasta, mesmo com frio, chuva e um pouco de cinzento nas nuvens.
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