segunda-feira, outubro 10, 2011

A mentira metaliterária, a literatura portátil

O Jorge Marmelo é uma ave rara. Daquelas que não precisa realmente ter asas para fazer voos rasantes à realidade, aos felizes acasos da vida, que, às vezes, a literatura trata de materializar - embora nem sempre para eles olhe com encanto e credulidade - e tem uma certa observação não participante na vida dos outros, para se inspirar nas mais pequenas coisas e fazer, com mestria e domínio da arte da prosa, magia com as palavras. 


Ele não me desmente: "observar a vida dos outros pode transformar-se num vício", lê-se na página 119 do seu mais recente livro "Uma Mentira Mil Vezes Repetida" (Quetzal). O jornalismo para ele é apenas um pretexto, um kit de ferramentas, para ele ser o que realmente é, fora do horário do expediente: um ficcionista - que precisa do oxigénio da realidade, para a reinventar. 

O Jorge desvela-nos a vida dos outros, que pode bem ser a nossa: ora enternecendo com a candura das palavras que parece que nos tocam; ora de bisturi afiado para expelir uma espécie de ironia ainda mais afiada que a arte de dissecar a espécie humana numa autópsia. 

É analítico, cerebral, de uma escrita inteligente e sagaz. É a escrita de um homem céptico, questionador, numa solidão, às vezes auto-inflingida, porque precisa dela para criar. É nela que encontra o seu melhor. O silêncio dele é o crivo criativo. E a sua mestria é proporcionalmente inversa à sua timidez.  É um estratega  intuivo quando se trata de amar o que ele tanto ama: escrever. 

Ele é uma ave rara porque na cadeira rangente de casa, quedo e mergulhado no branco do ecrã do computador e no tactear do teclado, viaja mais do que qualquer um de nós. Viaja compulsivamente nos livros e na imaginação das histórias que cruza, para fazer delas amantes fiéis ao que quer traduzir.
E, na "Mentira", vai da Hungria aos Estados Unidos com uma única bagagem: o volume pesado de uma sábia memória, o amor pela História, e a atenção exímia no aprender diário das coisas mundanas do quotidiano para o desconstruir (vejam, como tudo isto é um ardil- mas nós gostamos de ser iludidos), e folheando o lugar onde menos memória há: os jornais. 

Dessa forma, num pausa lenta e contemplativa, mistura, como passageiro clandestino das nossas vidas uma espécie de filosofia que só se encontra na física quântica: consegue provar-nos que tudo está interligado; que nada se dissocia: que um livro que não existe e a quem contamos aos outros como se verdade fosse pode ser mais verdadeiro, real e verosimilhante do que aquilo que sistematizamos como a prova cabal do axioma dos dias: é, logo existe. 

Nesta obra há um livro-dentro-de-um-livro-dentro-de-um-livro. Oscar Schidinski, o passageiro do autocarro (502), carrega um volume grosso (que não sabemos, se olharmos desavisados, ter páginas em branco, onde cabe cada uma das nossas histórias, por ora, quem sabe, escritas a tinta invisível) "Cidade Conquistada" - aliás primeira escolha do autor para título do "coiso", depois alterado para o nome actual, baseado na frase mítica do ministro da propaganda de Adolf Hitler, Joseph Goebbels, (que chegou mesmo a produzir falsos manuscritos de Nostradamus): "Uma mentira mil vezes repetida torna-se verdade." 

Esse famoso soundbyte engrossa a análise das Teorias da Comunicação sobre a arte do logro para manipular a verdade ("Toda a Arte do Político é fazer crer", Maquiavel ou como Lenine: "digam-lhes o que eles querem ouvir") e, numa lógica de espiral de verdades literárias, o Jorge baralha-nos numa aventura metaliterária, reflexiva, sobre os outros, nós, a verdade e a própria literatura, pela qual é apaixonado. 


E tudo isto itinerante, enquanto viaja de autocarro, como comum transeunte. Ora o Jorge-autor começou a fazê-lo, antes do Jorge-jornalista realmente o começar também a fazer para ir trabalhar, numa imitação visionária do anterior. Experimentei andar algumas vezes com ele, logo pela fresca da manhã, atenta, a olhar o que ele olhava: mas nunca via o que ele via, embora suspeitasse sempre que daquelas nossas viagens haveria tinta derramada.

Pelos menos três vezes li esta mentira. Duas vezes no ecrã do computador dele. Terminei-a hoje pela terceira vez, agora com o calor do papel e o cheiro químico da literatura.

Não só pelo que tem sido escrito na imprensa, mas sobretudo pela minha amadora intuição: esta é uma nova fase literária do Jorge, no conteúdo e na consolidação do estilo de escrita ( o bisturi da crónica semanal no P2 do jornal Público e a sua disciplina com a escrita também ajudam a afinar a tinta da pena), inovador, como se tivesse encontrado o seu melhor como escritor nesta mentira: podendo ser ele próprio como nunca, mais maduro, denso, sem ser hermético, cerebral e único, mas também, num evidente traço influente da literatura latino-americana, que ele tanto gosta, com uma textura borgiana para ser profundamente ele. É um grande livro e ele, sem dúvida, está de Parabéns.  Adoro a Mentira. 

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