domingo, julho 31, 2011

Mandim

Mandim podia ser uma estação do ano. E, se fosse, seria o melhor da Primavera. Se realmente fosse (e não há nada que garanta que não seja), seria ainda o lado ameno do Verão. E hoje ela pareceu-me feliz, apesar de silenciosa, meditativa, um tanto hibernada, com esse pouco de preguiça de Estio, daqueles de um corpo de fim de tarde num rescaldo pós-praia, e depois do banho. 

Mandim pareceu-me tudo isso, ainda que seja apenas uma estação de metro, a caminho do norte. Pareceu-me um lugar que a minha imaginação criaria, se não existisse. Talvez seja, por essa razão, que Mandim ficou-me ao ponto de certificar que seria um bom sítio para a minha mente lá ir sempre que quiser. 

É apenas um ponto de encontro de um transporte público no meio da mata norte: eucaliptos altaneiros, pinheiros em esplendor de veraneio, num bacanal natureba de invejar qualquer fotossíntese. Cheira a pinhas e resina, clorofila fresca, trespassada pelos raios dissipados que juro ter visto entre a neblina. E antes de ver isso, vi um largo de granito, desaproveitado, circular, com candeeiros estilosos e modernos, ao redor. 

E isto é apenas uma estação de metro, porque ao lado, uma casa rectangular com um éme azul-grande como assinatura insinuante o impõe, mas não o suficiente para ser impositiva no meio desta floresta. 

Os trilhos mal se vêem já, de tão verdes ao redor. 

É, Mandim, é apenas uma estação de metro silenciosa, mas nem por isso um repouso fantasmagórico que os lugares desabitados de vida humana podem ter. É uma estação em suspenso, com o termómetro equilibrado. Hei-de passar em Mandim no Inverno a ver se a Primavera existe, se esse Verão ameno lá mora. Mandim, hoje, foi muito bom nessa verdade. É como os nossos humores: têm estações do ano!  

quarta-feira, julho 27, 2011

Das coincidências e dos sonhos


Bem sei que é um tema recorrente falar-se daqui das minhas vigílias pelo reino de Morfeu e pelo insondável não-lugar, quase distópico que ele será (não tenho certeza de que Italo Calvino tenha por aqui passado nas "Cidades Invisíveis, mas gostaria). E ocorre-me hoje que essa geografia não mapeada deve ser um celeiro, a cérebro fechado, onde se labuta com afinco e dedicação. Funcionará assim: os expeditos donos das mãos que os debruam, com novelos de várias cores, reúnem-se para decidir dos temas. Uma caixa (Pandora?) terá milhares de papéis e alguém arrisca pinçar um do imenso branco-homogéneo que a tinta da china os terá escrito.

sábado, julho 23, 2011

Amy, 27



A primeira coisa que o meu irmão disparou, esta tarde, quando lhe disse que a Amy Winehouse tinha sido encontrado morta no apartamento, em Londres, foi:
-Há muita gente que vai ganhar dinheiro com isso!
De imediato pensei, claro, na fortuna deixada; nas discórdias para dividir o património que a senhora da voz jazzística, soul, densa e grave, avassaladora, sexy e aveludada, inevitavelmente terá deixado, como todos os grandes artistas deixam como assinatura post mortem.
Eu estava profundamente equivocada. 

quinta-feira, julho 21, 2011

Aforismos oníricos de Kafka, ou melhor não jogar na lotaria

Caranguejeira, a.k.a Tarântula, Ilha de Cotijuba, Amazónia - Vanessa Rodrigues

Tenho uma relação estranha com os sonhos. Nós não nos falamos, propriamente. Sabemos da presença um do outro e nenhum dá o primeiro passo. Eles nunca me perguntaram: - E aí, van, o que você quer sonhar hoje? Pois é: e eu também nunca pedi nada. Fico quietinha. Deito-me a pensar que vou descansar, só isso. Apago a luz e é quase automático: zzzzzzz.... uma sorte. 

Acontece que eu presencio algumas metamorfoses na minha cabeça. Neles, os sonhos de facto - não aqueles que de olhos acordados vamos planeando para que eles aconteçam. Mas aqui, na cuca cerebral, eles acontecem, mais ou menos a cada ciclo de dois em dois dias, quando me lembro deles, e são uma espécie de filmes gratuitos, sem pipoca, desconto de estudante (que já não tenho idade para isso, mas devia), papel de rebuçado ou chocolate em crunch-crunch ressoante, enfim, os adereços necessários para sabermos que vai fazer-se cinema comercial. Talvez seja por isso: é outra coisa!

Já aqui dei conta de alguns sonhos kafkianos. E o escritor checo não se livra da metáfora categorizadora para tudo o que é estranho, relacionado com as recônditos caminhos da mente, labiríntico, absurdo e de certa forma implica transformações físicas: sai deste corpo que não te pertence

Foi o que quis gritar, anteontem, quando estava dentro deste sonho: uma rua cinzenta que sobe, as minhas pernas e, de repente, (isto não é para pessoas sensíveis, por isso, ainda vai a tempo de aqui parar) um rato entranha-se na minha perna. Entra pele adentro. 

Que coisa nojenta, penso agora que escrevo; como vou tirá-lo da perna?: pragmatismo dentro do sonho. E pragmatismo dentro do sonho aconteceu: enrolei a pele onde ele se encontrava e a coisa transformou-se em aranha; quando saiu, morta, era um pássaro amarelo. 

Três seres dentro e fora da minha pele. Acordo e tudo isto é um absurdo. Que coisa anda a mente e magicar. Talvez sejam efeitos colaterais do processo de hibernação desde a semana passada. Quando a vontade vem, convém agarrá-la a jeito. 

Tinha-me esquecido desse sonho, até que alguém me fez chegar um vídeo, que acredito ser spam, de uma miúda (eu não vi), com uma aranha como inquilina no corpo: via-se uma teia farfalhuda à volta do seio. 

Fui por isso, tentar perceber o que significava aquele meu sonho: e, a acreditar nesses muitos dicionários de sonhos da internet da vida uma coincidência, não é, como previa, coisa boa. Todos os bichos estão relacionados com negócios e dinheiro. O rato significa perdas financeiras, a aranha dinheiro, mas morta est, logo nada prenúncio de coisa boa; e o pássaro amarelo, que saiu no final, e que eu aniquilei, é auspício de azar nos negócios, perdas financeiras. A fazer-me valer pelo pragmatismo da vida vou considerar que tal como o e-mail, esse sonho foi um spam do sistema cerebral, na verdade nunca chegou a realmente a acontecer. Querem apostar?

Algo acontece na Alma...

... ou no coração, quando cruza a Ipiranga com a Avenida São João. Está preparado para viver a mil? Sim, na cidade que não dorme...

quarta-feira, julho 20, 2011

Três verdades contemporâneas

"Creio no invisível
Creio na levitação das bruxas
Creio em vampiros
Porque os há"

Pag. 37
Conceição Lima, O País de Akendenguê (poesia), Editorial Caminho, 2011

Vamos...fazer cinema?

terça-feira, julho 19, 2011

A arte do funambulismo


O cheiro do ralo





O meu nome não é Johnny, muito menos Selton Mello, o grande, mas atrevo-me a evocar para título deste post o nome do filme de humor negro que levou a prosa do brasileiro Lourenço Mutarelli (vénia: gosto da escrita deste homem) à telona em 2007. Não se sentia o cheiro daquele ralo, em close-up, do escritório do Lourenço (Selton) mas quase que o podíamos imaginar. De alguma forma, já estivemos perto de um ralo assim. Estamos a vê-lo, ali. E ficarmo-nos por imaginar o sni-snif com a sugestão da imagem, neste caso, não é mau de todo. 
Pior seria caso os artistas da vanguarda cinematográfica tivessem arranjado uma forma de nos transferir o olor do filme para a sala de cinema. Por isso mesmo, fiquem descansados, o cheiro que se segue não se sente desse lado, estão salvaguardados, mas, advirto: requer algum estômago na dissecação e digestão da escatologia. 

A ela: os nossos queridos WC, em viagem. Quem não tem uma história com WC que faça a primeira descarga....Uns segundos. Pausa... 
Prosseguimos então perante o silêncio do autoclismo. 

Ocorreu-me falar sobre isto depois de uma longa conversa de fim-de-semana sobre cerveja e efeitos diuréticos. Eu sei, há melhores assuntos, mas vá-se lá entender o que se passa na nossa cabeça, once in a while!


Depois, lembrei-me que no dia de São joão, às cinco da matina, apertadinha, um dos únicos cafés abertos em Miragaia, negou-me a entrada triunfal para aliviar a sufocada bexiga. Como fosse a resposta pouco convincente, pelo olhar de gozo da anafada moçoila que se sentava no balcão do bar, proferindo um desleixado discurso com cunhado sotaque à "Puorto", veio reminiscência sobre o assunto:


- "Num pode ir?"
- Porquê?
- Num póde?
- Porquê?
- Tá abariáda!

Várias vezes ouvi este "avariado" em cafés, onde entrei, esporadicamente, para tentar obedecer à fisiologia. A nega inevitável da nossa portugalidade, e claro de um direito que assiste ao dono de deixar entrar quem lhe convier: Só pessoal que está a consumir pode usar a casa-de-banho. Ámen!

Cheguei a tomar café, água, sumos, enfim, uma série de consumos só para poder usar o WC. É um tema para discussão, mas dou-lhe um ponto final, porque estamos esclarecidos do contexto geral. Interessa o que se segue. 
Desventuras de WC, em trânsito.

Várias negas tive, também, em cafés em Munique, Alemanha, Estrasburgo, na França. Três pontinhos para outras geografias... Curiosamente nunca levei uma nega dessas no Brasil, terra de gente generosa e solidária, talvez a sociologia explique alguma coisa sobre o assunto. E, depois há isto: a saga por um WC. 
3 notas: entre a Bolívia e a Amazónia. 

1. São 5 da manhã e estamos quase de partida. É Manaus; é a base aérea da Força Brasileira. Ali ao fundo está um Caravan, avião, 10 lugares, onde passarei duas horas de sufoco, encolhida. Última estação, antes de voar: WC, check. 
Por isso, não sei por que razão, meia hora depois, a bexiga temperamental avisaria querer ser esvaziada. Coisa muita para quem adora voar. Coisa muita, para quem vê um manto verde lá em baixo com rios e igarapés a serpenteá-lo de azul barrento. Coisa muita, para quem está com desconhecidos, militares e não pode propriamente dizer: 


- Oh senhor piloto, faça o favor de encostar ali na próxima estação de serviço que a portuguesa tem de aliviar a bexiga rebelde. 


Coisa muita! Olhei para P., várias vezes, desesperada, que tentou arranjar forma de me acalmar dizendo que estamos quase a chegar e o que o melhor a fazer é não pensar no assunto! Tento. Eu tento. Mas é coisa muita, quando se tem a bexiga a rebentar. Eu vejo verde, vejo cockpit, vejo verde, sorrio, penso na viagem, olho o verde, mexo na máquina, desejo que não falem comigo, desejo que a bexiga se lembre de, como eu, pensar noutra coisa. Foram duas horas de exercício nirvana para ficar zen e não pensar. A pista está ali ao fundo, exígua, e ainda bem que mesmo assim adoro voar, adoro estar num Caravan com 6 militares, e dois pilotos experientes, com a bexiga cheia, enquanto tentamos acertar na pista. Ainda me lembro de filmar o momento e lá se foi desejo de WC, um minuto. Mal  motor pára, sou a primeira a sair. As boas vindas de Santa Maria do Boiaçu, em Roraima, foi no WC, num lento sussurrado líquido. 

2. Bolívia, 10 horas de viagem e um autocarro velho. É deserto: e é nele que paramos depois de passar Oruro, enquanto tentamos chegar a outro árido lugar, perto do Atacama, o Sal. Cinco horas depois e amanheceria. Não há WC. Há muito lixo ao redor do deserto cinzento. Há casas de adobe lá ao fundo. Estou com a Manu e mais umas duas dezenas de bolivianos e uma equatoriana louca, também, chamada Vanessa que dorme com um cobertor em cima da cabeça. Acordamos com cheiro de gente e panos velhos. Saio para ir comprar alguma coisa para comer e WC. 
Caminho. 
Há ali um Motel. Um Motel deve ter WC. Algo parecido. Bato à porta. Vem uma dessas cholitas de tranças compridas, cabello negro, e chapelito. As saias são compridas; a vida dela também já o deve ser, e a pele confirma-o, enrugada. Abriu um imenso portão para ver o meu entusiasmo. Lá ao fundo quartos. Depois, vê a minha desilusão: ela a garantir-me que não há WC's. E fica nisto:
- donde esta el coche? Donde está el coche? hã! hã? donde está? yo quiero verlo. Donde está el coche malogrado?

Eu é que estou malograda senhora, penso. WC ali ao fundo, hã, não? Motel, aqui, hã? Certo? Ficamos nisto uns 10 minutos. Chego mesmo a mostrar-lhe o autocarro, lá ao longe (grande acontecimento na região). Até que abro a mão, soles: é ela quem tira e por pouco menos de 1 euro decide que, afinal, o motel tem casa-de-banho e que posso usá-la, ali ao fundo. É ela a ver de novo o meu entusiamo. É eu a ver o entusiasmo dela: soles e bus malogrado! 

3. O deserto ainda e agora sim, o cheiro do ralo; e desta nem o Mutareli se lembraria.
Mais umas 4 horas depois de autocarro e ainda faltam 3 para chegar ao Yuni, pertinho do Deserto do Sal onde Dali se inspirou para desenhar alguns dos seus quadros surrealistas. Um deserto que é branco e que tem um monte de terra que é ilha, habitada por centenas de cactos como os da foto deste post, há-de ter a sua quota de surrealismo e nós, que a percorremos, estaremos um pouco mais próximas de André Breton. Vamos. 
O autocarro parou de novo. Desta vez paragem técnica e queremos pois um WC. 
- Qué?
Pergunta-me uma senhora, como se folheasse um dicionário à procura de uma descrição. Até que ela percebe onde queremos chegar e descreve aquilo que parece um buraco no chão; ou, segunda opção: um arbusto.

Ao redor: adobe e pó cinzento. Uma cidade fantasma e casas insalubres. Bem-vindos ao faroeste boliviano. Uma estação de comboios desactivada, lá longe, a cinco minutos, de portas fechadas. Não há cafés, as casas têm pequenas portas de madeira nas traseiras, que presumo que seja o tal buraco no chão. Rendo-me, mas a Manu fica em pânico. 


Salva-se ali, perto da estação, dois blocos de cimento com mais 2 buracos no chão (algo quase SlumDog milionário, mas um pouco menos). Enfrento a fisiologia com fervor antropológico e sugiro que ela faça o mesmo, pois ainda faltam 3 horas para o destino final, que não sabemos se será pior. Melhor? 
Ela ignora e sai à procura de um WC como se não tivesse ouvido e visto o mesmo que eu. Sigo. A minha estratégia: toalhitas de bebé, fresquinhas e cheirosas no nariz e pronto, uma história para contar. 
E a Manu ainda às voltas, até que a camioneta vem à procura dos passageiros (des)aventurados na exploração de uma casita. Ela rende-se, mesmo sem toalhitas. 


Agora que me lembro disto, que vos conto, ocorre-me uma declaração de rigor: com as toalhitas a viciar o odor a creme fofo no meu narizito não senti o verdadeiro cheiro do ralo do faroeste boliviano. Antes, assim, ao menos sobrou alguma coisa para imaginar. Vou pensar com carinho no assunto!





Relações Experimentais

Yijun Liao
Não tem wikipedia, nasceu em Shanghai, fartou-se de ser freelancer, fez mestrado em belas artes e agora mudou-se para Nova Iorque. 

segunda-feira, julho 18, 2011

A linha do horizonte

Aquela linha ali ao fundo, nem mar, nem céu, um meio, é o horizonte. Primeira lição: podemos alargá-lo, fazer dele futuro, ontem, fazê-lo um longo hoje, expandi-lo, ver-lhe as cores que tem e quanto há nele de verticalidade, a diagonal, virá-lo de cabeça para baixo e vice-versa, esquecê-lo, e perceber, afinal, que por isso, ele não tem nada de horizontal. É uma linha invisível, da nossa cabeça, não existe. 

Com sorte, terá pôr-do-sol, far-nos-á querer tocá-lo, apalpar a densidade da sua transparente existência e que tanto nos está no imaginário colectivo. Ter horizonte. E ter horizonte é arregaçar mangas e enfrentar a vida olhos nos olhos, ou o quer que isso signifique. 

Segunda lição: os olhos têm horizonte. E é assim que lá chegamos pela lente de Steve McCurry. 

Em 1992 o fotógrafo norte-americano mostrava o olhar da guerra no Afeganistão através de Sharbat Gula, a menina que destapou o rosto tenro, por momentos, para ser capa da National Geographic. Eram notícias de um certo Oriente. Mas é raro o Oriente entrar assim no Ocidente, a não ser para falar de intolerância e fundamentalismo. Só se dermos um salto à Aljazeera vemos que há mundo com outro horizonte daquele lado, com músicas do mundo. Aquele lado não é o nosso. Ensinam-nos que não é. E o contrário também há-de acontecer. Nós não conhecemos os horizontes do mundo.

Terceira lição: é pelo lado inverso do espelho que lá chegamos. E pelo olhar. Ziba tem esse mesmo olhar, mas não entrou no Ocidente. Esses mesmos olhos intensos, claros e afegãos. Tem outra guerra. Tinha. Acabou por perdê-la. Foi assassinado há uns meses em Kabul. O corpo foi esquartejado e entregue à família. Era travesti, dançava em festas. E, embora muito meninos, desde tenra idade, conforme testemunha o repórtePlàcid Garcia-Planas na revista digital Frontera D, sejam obrigados a vestir-se de meninas para dançar em festas, como cultura arraigada, matar um travesti no Afeganistão pode equivaler a ter um lugar reservado no céu. E num país que é ground zero, matar um travesti é um efeito colateral sem importância. 

Quarta lição: o jornalismo tem esta perversidade. Contamos histórias de pessoas em perigo. Estamos lá, sentimos-lhe o bafo e o apelo. Voltamos. Trazemos um pedaço da história, mesmo que o outro fique sem horizonte. Naquele momento fomos presente e futuro. E horizonte é esperança. E continuidade aqui é não ter para onde olhar, porque não há linha invisível, a não ser o fio ténue de vida.

Quinta lição: a linha do horizonte é demasiado oblíquia, como a chuva, para falarmos de verdades. Plutão planeta foi. Cogito ergo sum. Mas há esta verdade: não há água para flores no Afeganistão. E os afegãos adoram flores. Um povo rude a gostar de flores já é um horizonte.  

6# Pássaros e Gaita de Foles

6# Pássaros e Gaita de Foles by vanessar

domingo, julho 10, 2011

Minha FLIP privada...

Como já aqui tinha dito, é a minha primeira vez sem Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP), em alguns anos. Por isso, decidi fazer a minha FLIP privada, embora confesse que talvez por isso, me doa menos um poucochinho não lá estar. Hiberno um pouco, vejo a maior parte dos vídeos disponíveis; reconheço escritores ali convidados já na minha pequena bagagem (viagem) literária, e resolvo recolher-me para me inspirar na vida leve e intensa que essas FLIP's me deram. Se sou um pouco melhor naquilo que faço, também, o devo a esses dias, a essas andanças literárias. É FLIP na bagagem e isso há-de importar alguma coisinha!

Um passaporte e La Tripla Frontera

A Laura achou melhor que mal eu chegasse a Foz de Iguaçu apanhasse um autocarro para ir às Cataratas. 


Pôr-do-sol a marcar fim de tarde, poupar tempo e, afinal, uma mochila com máquina fotográfica, três pares de cuecas e uma muda de roupa, não haveria de pesar até ali. 

Os cacifes resolveriam o problema e a única coisa que carreguei, além da máquina para caçar imagens no Parque de Iguaçu, lado brasileiro (da janela-miradouro vê-se a Argentina), foi a minha ideia das Cataratas: um Niagara em miniatura, sem nunca ter estado antes nem num lado, nem no outro. 

Hordas de turistas e uma fila pica-o-bilhete marcaram de imediato a minha ideia daquilo. Parque para turista ver. Eu sem paciência. Paciência sem mim. Mas já que ali estava, ao menos pudessem os meus olhos despir as afamadas Cataratas. 


Veio o guia dizer que as fotos eram melhores de lá de baixo dos barcos. E dava para ir a pé? Não. E o bilhete incluía a visita? Não. Então como queria ele que eu tirasse fotos lá em baixo ? Por 400 reais, cerca de 180 euros, teria os melhores cartões-postais na minha câmara. 

- "E está cheia de sorte, porque o meu grupo vai sair agora?". 

Por 400 reais, pensei, comprei bilhete de ida e volta de avião São Paulo-Foz, paguei as 4 noites de alojamento e ainda me sobraram uns trocos para comer. Voilá. 


- Obrigada, mas não estou interessada! Boa viagem para si! 

Carrancudo, virou-me costas. E eu fiz zoom in para o lado argentino...

Pôr-do-sol, um sumo de abacaxi por 6 euros, mochila e autocarro de volta. A casa da Laura é uma velha vivenda com quartos para alugar. O Guia Michelin diz que é o lugar mais acolhedor de Foz. Qualidade-preço! Na internet, vários turistas foram-se embora deslumbrados. Os comentários ali estão entusiasmados. Um deles, um alemão, nunca mais voltou. Casou-se com uma brasileira. Ali ficou ancorado em Foz. 

A casa tem micro-ondas, frigorífico, televisão, e uma campaínha para anunciar quem chega. Um longo e enferrujado portão de ferro. Desliza.

- Pensei que não vinha mais!

Ela quer conversa. Eu quero descanso. 

Vence o elo mais forte: - venha, venha, menina, você tem de ir ao Paraguai. Fomos lá hoje, olhe só o que eu comprei: batôns de várias cores, escolha um: eu ofereço...;

- Eu, eu....

_ Vá, não seja tímida, escolha um. Olhe este roxo na minha mão, demais. O preto, oh, não é mesmo preto; veja, comprei duas perucas, mudo sempre de visual; e óculos, olhe esta armação; e estes bolinhos, prove um...

- Eu, eu...

- Vá, prove! Não seja tímida...

Está nesta excitação, quer mostrar-me tudo o que é o mundo dela, talvez jogar cartas, ver televisão, ouvir-lhe as histórias do dia em que a aquela casa (a mesma onde dormirei, num quarto lá ao fundo) foi tomada por um bando de criminosos, fugidos da prisão de Mato Grosso do Sul. Fizeram-na de refém e ela, inabalável, como se nada se passasse, ia às compras de sorriso nos lábios...

- Eu, eu, só queria descansar um pouco, por favor, antes de jantar. Estou muito cansada da viagem e tive hoje demasiada informação para um só dia..

-Claro, mas você tem de ir ao Paraguai. É uma loucura. Você pega o ônibus, sai nas lojas, tem várias, dezenas, centenas, é só escolher, o que tem de eletrônicos, menina!!!...

É o paraíso fiscal, é a maravilha do contrabando; é o povo feliz com quinquilharia a atravessar a ponte da Amizade. E eu sozinha, na casa que já foi tomada por criminosos, sem mais hóspedes. À noite, tiros que vêm do rio Paraguai. 

Isto é o mundo em Foz de Iguaçu, em Ciudad del Este, em Iguazu. A tripla fronteira é uma realidade que, nestes moldes, nenhuma ficção a tornaria tão normal.

Amanhã: passo a fronteira para Iguazu, mas é como se nunca tivesse saído do Brasil. Não há carimbos. Poderia dali evadir-me sem deixar rasto... É um bom lugar para nos escondermos. É um bom lugar para ir às compras, como se nada se passasse, enquanto guardamos em casa foragidos da justiça...

sábado, julho 09, 2011

soy cambio, 
turbilhão dos outros,
fogueira a arder da lenha quente dos dias
destes dias...

cera fina de pavio interminável
espelho invertido
renda
raiz

crime e castigo
metamorfose
noites brancas
palpitação

latino movimento de corpo
crioulizada voz,
destes dias

soy cambio, el olvido de los otros

desafino, adormeço
rendilho sonhos na geografia do que virá

país sem bandeira, voz sem hino
caixa de pandora no discurso dos teus sonhos, morfeu

vermelho e negro

auto da barca do inferno
branco e preto, preto e branco (sou ying e yang)
morte e vida severina

sou maktub, para voltar a reescrever

valsa lenta,
flor do mal
a dor,
metamorfoses (ovídio?)
a idade da inocência

sou, sim, no fim, um fahrenheit 451

anota-me: soy cambio, página 69
edição limitada

Hilda, não sabe o que a espera

Nunca sabemos. E há algum tempo que não lhe falo, ainda que todos os dias haja uma voz adoçada que a ela me leva. Nem sequer tempo tenho tido para responder ao disparo de mensagens que dela me chegam todos os dias. (Confesso que desconheço como consegue ter tempo, embora o tempo do outro lado, ali, acolá, aqui, além, seja um movimento diferente).

Até postal cheguei a receber estes dias. Tinha a curva dos morros. E algo que suava a cidade maravilhosa, embora uma parte desses poros transpirados, nas texturas do papel amarelecido de sol quente das vitrines da papelaria, tivesse muito de Hilda. Por trás dele, unido por um clip, tinha outro: um carro antigo e letras rendilhadas: Havana. 


- Van, eu fui, você acredita?

E, agora, que Buena Vista Social Club está emancipado na vitrola, com violino, viola, saxofone e uma batucada Chan Chan respira, urge que lhe responda. 

- Lembras-te quando dançaste de rum na mão direita, em rodopio, dizendo que eras Cuba, depois de seres Rio? Nunca conseguimos entender como alguém pode sê-lo. Ser uma cidade, Hilda? Ainda mais uma que não se conhecia. E imaginar é distorcer um pouco mais a realidade.

Todos olhavam e, claro, repetias que De Camino a La Vereda, eras borboleta, e que esse movimento de rodopio já tinha influenciado o tempo, e unido Rio a uma Cuba. E estávamos nós a ver-te girar, como mundo. Eras mundo. E ser mundo é ser quinto elemento. 

Subiste as escadas. Era um bar. Bar que é casa de antiguidades. Estavas diletante, mas viajando no pó; e podíamos jurar que foste etérea. Que te fundias num Amor de Loca Juventud. Veio-te o delírio de te sentares em cima do piano. 

- Olha Van : é português: "Eliodoeo D'Oliveira - Lisboa". 

Aquilo ainda tocava, e por trás dos teus dedos, desafinados, mas em sintonia com mundo, que viver com essa intensidade é inveja certa à inércia, lia-se: "Rud IBach Sohn". Sabíamos lá o que isso queria dizer. Mas tu insistias que o mundo estava ali e não havia coincidências. Que rum era Cuba, tudo isto Rio e o piano Portugal. E que Portugal era todo o mundo, e todos os países em nós. Voltaste a rodopiar. Tiramos-te o rum e disparaste:

- Não façam isso. Eu não sei o que me espera! 

E nisto ele veio. 

-Señorita, me acompaña a dançar?

E foste a Cuba. 


Eu sei: efeito borboleta!



sexta-feira, julho 08, 2011

o céu azulou, na linha do mar...

....quem me vê sorrir, não há-de me ver chorar...