Se tivesse escolhido a estação da Casa da Música sempre seria mais chique. A de São Bento já foi mais frequentada – que isto do metro é tirania concorrencial - e a da Campanhã, sem ser preciso um grande olhar efeito-lupa, é mais esponjosa e sumarenta no suor antropológico, com poros de onde sai gente de todos os cantos do país e condição social. Mas, a estação da Trindade, parece-me, tem mais ar de laboratório das gentes, bem entranhada num coração de Porto com arritmias e veias grossas que sentimos a palpitar de vida: confusa; gente a esbarrar em ombros e um tsts-tsss irritado; olhos cabisbaixos, escondidos, disfarçados; gente de calções, chinelos-praia e toalha (se o domingo já acorda solarengo); pastas pesadas; fatos, saias, gravatas, sapatilhas, hormonas, borbulhas e cheiro a suor; peitos imberbes; decotes e seios fartos, bundas proeminentes; violinos na mala; perdidos-achados-perdidos; metros avariados; metros expresso: Póvoa de Varzim; Ismai, Senhor de Matosinhos, Estádio do Dragão, Câmara de Gaia, Paranhos; abre-porta-fecha-porta; casais de mãos dadas, juntinhos, beijos (e há tantos beijos de Primavera, mais leves que os de Inverno); cheiro a café; dlim-dlom impertinente, camuflado de burburinhos, barulhos, ruídos, tocs, tap-tap de solas de plástico, pele, borracha, rolantes (hoje há as crianças de sapatilhas-patins-em-linha).
Talvez alguém já se ali tenha perdido. Talvez alguém ali já se tenha encontrado. Talvez muitos "talvezes" já tenham sido a solução para dúvidas e outras divagações mais. Talvez alguém ali já tenha reprimido o desejo de voltar a casa. Tenha chorado, rido, amado, vivido muito, intensamente. Talvez ali o chão já tenha sido cama, e o tecto abrigo; talvez ali casais já se tenham separado; outros já se acotovelaram sem saberem que eram um grande amor.
A estação Trindade é uma cidade. É a minha cidade, também, e nada é dela, como se nos pedisse, todos os dias, que lhe fizéssemos respiração boca-a-boca para sobreviver, porque ela se morre todos os dias; porque (sobre)vive todos os dias, sem bolsas de oxigénio. É cidade aparente (e sem laços filiais): onde ninguém se conhece e todos se vêem, a passar, nem que eu seja só um corpo parado na linha amarela (não atravessar: quantos já pensaram em fazê-lo?). Há estatísticas de coisas imaginárias que nunca o serão porque não podem ser contabilizadas. E eu gosto, sobretudo, das coisas que não podem sê-lo. Há números que nunca teremos para perceber o viés das nossas arritmias. Ali, na Estação Trindade, as veias cruzam-se como rios, para vários destinos dentro desta tacanha e nova cidade. Que gente é esta que ali passa? Quantas Anas ali estão ao mesmo tempo? Quantos Josés, Marias, Joaquins, Manuéis, Cristinas, Soraias, Vanessas, Joanas, Martas, Luíses, Alices, Leonéis, Ricardos, Miguéis, Albinos, Daniéis, Jões, Paulos, Ruis. Quantos marceneiros, domésticas, psiquiatras, padeiros, carpinteiros, secretárias…Quantas diferenças? E o ser o humano é uma peça terrivelmente frágil e despreparada para a vida. Tão igual, por isso!
A estação Trindade é uma cidade. É a minha cidade, também, e nada é dela, como se nos pedisse, todos os dias, que lhe fizéssemos respiração boca-a-boca para sobreviver, porque ela se morre todos os dias; porque (sobre)vive todos os dias, sem bolsas de oxigénio. É cidade aparente (e sem laços filiais): onde ninguém se conhece e todos se vêem, a passar, nem que eu seja só um corpo parado na linha amarela (não atravessar: quantos já pensaram em fazê-lo?). Há estatísticas de coisas imaginárias que nunca o serão porque não podem ser contabilizadas. E eu gosto, sobretudo, das coisas que não podem sê-lo. Há números que nunca teremos para perceber o viés das nossas arritmias. Ali, na Estação Trindade, as veias cruzam-se como rios, para vários destinos dentro desta tacanha e nova cidade. Que gente é esta que ali passa? Quantas Anas ali estão ao mesmo tempo? Quantos Josés, Marias, Joaquins, Manuéis, Cristinas, Soraias, Vanessas, Joanas, Martas, Luíses, Alices, Leonéis, Ricardos, Miguéis, Albinos, Daniéis, Jões, Paulos, Ruis. Quantos marceneiros, domésticas, psiquiatras, padeiros, carpinteiros, secretárias…Quantas diferenças? E o ser o humano é uma peça terrivelmente frágil e despreparada para a vida. Tão igual, por isso!
De onde vem tudo isto, agora? Sobretudo, porque hoje ainda não saí de casa (o jardim não conta), num prolongado namoro com o meu computador, (ardem-me os olhos de tanto ler; prendem-se-me os dedos de tanto teclar) que só não dorme comigo porque ainda não inventaram um que se ligue ao cérebro (ufa!):- ou melhor inventaram mas ainda é cedo para popularizar a coisa. Por isso, o meu chega a ser é filho, que carrego ao colo, ditador, marido, tirano: uma costela de mim. É só isto, então: a Estação Trindade vem da memória, agora. Surpreendente. Isso porque sou uma distraída inconsciente ( sem querer hormonal para o óbvio, complicando). Talvez porque a vida me passa pela cabeça em fast-forward, erase-and-rewind, e onde milhões de circuitos, ideias, hipóteses e possibilidades se enrodilham quase em curto-circuito de uma vez só. Em arritmia. Dá um aperto por tanta coisa boa que há para fazer. E é tão imensamente fácil desligarem-me: pára e vamos ver o mar. Ele sabe bem fazê-lo!
Mas acho que a Estação Trindade vem, sobretudo, da droga: se houver um dia que não escreva começam os suores, as palpitações e aquela angústia. E, de repente, achando que na verdade não estava a prestar a mínima atenção a determinadas coisas lembro-me, dias depoism deste ou daquele pormenor da rua, da pessoa, de ouvir. Coisas que não tive, na época, a menor percepção de que tinham entrado para o meu clube de memórias com lugar já cativo e sem convite oficial. As minhas memórias são assim. Vão ficando sem as convidarmos para entrar. Aconteceu-me há uns tempos na esplanada da Praia dos Ingleses, numa tarde sem livro para folhear, dedicando-me por isso, involuntariamente, à arte da observação esquerda-direita-esguelha-direita-esquerda. Dias depois a coisa ganhou uma tentativa de poema fajuto. Há coisas que poderia fazer melhor. Há coisas que até faço melhor. Mas não consigo fazer outra coisa senão escrever, para o bem das minhas arritmias. E das memórias!
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