Não sabemos rigorosamente nada sobre o Amor até termos experimentado de um certo tipo de Amor que só uma minoria se pode regozijar de o ter vivido. Só que esse dura a vida inteira e, por isso, ninguém está verdadeiramente preparado para dele falar. E os contemplados desse tal, só arriscam a dar a cara e a voz em amostra muito parca.
É, há um certo tipo de Amor que talvez já não se fabrique e que só o tempo, em acto prolongado e contínuo, poderá provar a respectiva genuinidade, o que implica que muitos de nós já não estaremos lá para saber.
É, estou certa, de que há um certo tipo de Amor que alguém, alguma coisa, ou uma série de equívocos que nos impuseram, tratou de limitar, e que esteja talvez hoje ao alcance de uma minoria. E isso, para que não haja enganos, porque ouvi hoje uma senhora de 72 anos - cujo marido de 80 está acamado há dez, a respirar por um tubo, sem se mexer, com problemas de circulação e a comer papas pelas mãos dela - dizer, com os olhos humedecidos e carregados de sinceridade como quem conta um segredo, que amar é paciência, rezingas, doces e amargos, palavras avinagradas e açucaradas, noites em silêncio, "dando as mãos juntos para vencer a vida" e "juntar os cacos que ela às vezes separa.
Ela, a mulher de 72 anos, que escrevia poemas sentada no sofá sob a imensa luz do quarto e na cadência de um respirar asmático, disse-me que voltaria a fazer tudo de novo. (Dizer que se volta a fazer tudo de novo é manter a vida pelo que ela foi e poucos podem, apesar de tudo, asseverar que o faziam).
Garantiu-me que nunca lhe faltou. Nem ele até onde pôde. E continua a amá-lo, com saudades daquele "homem alto e forte" que a agarrava sempre que lhe queria "roubar um beijo". Porque os beijos roubados, mesmo no amor, são os mais saborosos.
Apeteceu-me, por isso, elogiar esse tipo de Amor porque, embora saiba isso tudo e o tenha repetido como mantra desde que comecei a perceber que amar traz esse formigueiro ao coração, sei que é tão raro e delicado que só lá no fim da linha saberei se fui digna. É esse certo tipo de Amor que desejo que lá esteja. Aquele que não tem medo de juntar os cacos mesmo quando a vida trata de cravá-los na pele. O resto não importa realmente nada.
Elogio do Amor, por miguel esteves cardoso
“Quero fazer o elogio do amor puro. Parece-me que já ninguém se apaixona de verdade. Já ninguém quer viver um amor impossível. já ninguém aceita amar sem uma razão. hoje as pessoas apaixonam-se por uma questão de prática.
porque dá jeito. porque são colegas e estão ali mesmo ao lado.
porque se dão bem e não se chateiam muito. porque faz sentido.
porque é mais barato, por causa da casa. por causa da cama. por causa das cuecas e das calças e das contas da lavandaria.
hoje em dia as pessoas fazem contratos pré-nupciais, discutem tudo de antemão, fazem planos e à mínima merdinha entram logo em “diálogo”.
o amor passou a ser passível de ser combinado. os amantes tornaram-se sócios. reúnem-se, discutem problemas, tomam decisões. o amor transformou-se numa variante psico-sócio-bio-ecológica de camaradagem. a paixão, que devia ser desmedida, é na medida do possível. o amor tornou-se uma questão prática. o resultado é que as pessoas, em vez de se apaixonarem de verdade, ficam “praticamente” apaixonadas.
eu quero fazer o elogio do amor puro, do amor cego, do amor estúpido, do amor doente, do único amor verdadeiro que há, estou farto de conversas, farto de compreensões, farto de conveniências de serviço. nunca vi namorados tão embrutecidos, tão cobardes e tão comodistas como os de hoje.
incapazes de um gesto largo, de correr um risco, de um rasgo de ousadia, são uma raça de telefoneiros e capangas de cantina, malta do “tá tudo bem,tudo bem”, tomadores de bicas, alcançadores de compromissos, bananóides, borra-botas, matadores do romance, romanticidas. já ninguém se apaixona? já ninguém aceita a paixão pura, a saudade sem fim, a tristeza, o desequilíbrio, o medo, o custo, o amor, a doença que é como um cancro a comer-nos o coração e que nos canta no peito ao mesmo tempo?
o amor é uma coisa, a vida é outra. o amor não é para ser uma ajudinha. não é para ser o alívio, o repouso, o intervalo, a pancadinha nas costas, a pausa que refresca, o pronto-socorro da tortuosa estrada da vida, o nosso “dá lá um jeitinho sentimental”. odeio esta mania contemporânea por sopas e descanso. odeio os novos casalinhos. para onde quer que se olhe, já não se vê romance, gritaria, maluquice, facada, abraços, flores. o amor fechou a loja. foi trespassada ao pessoal da pantufa e da serenidade.
amor é amor.
é essa beleza.
é esse perigo.
o nosso amor não é para nos compreender, não é para nos ajudar, não é para nos fazer felizes. tanto pode como não pode. tanto faz. é uma questão de azar. o nosso amor não é para nos amar, para nos levar de repente ao céu, a tempo ainda de apanhar um bocadinho de inferno aberto.
o amor é uma coisa, a vida é outra. a vida às vezes mata o amor. a”vidinha” é uma convivência assassina. o amor puro não é um meio, não é um fim, não é um princípio, não é um destino. o amor puro é uma condição. tem tanto a ver com a vida de cada um como o clima. o amor não se percebe. não dá para perceber. o amor é um estado de quem se sente. o amor é a nossa alma. é a nossa alma a desatar. a desatar a correr atrás do que não sabe, não apanha, não larga, não compreende. o amor é uma verdade. é por isso que a ilusão é necessária. a ilusão é bonita, não faz mal. que se invente e minta e sonhe o que quiser. o amor é uma coisa, a vida é outra. a realidade pode matar, o amor é mais bonito que a vida. a vida que se lixe.
num momento, num olhar, o coração apanha-se para sempre. ama-se alguém.
por muito longe, por muito difícil, por muito desesperadamente. o coração guarda que se nos escapa das mãos. e durante o dia e durante a vida, quando não esta lá quem se ama, não é ela que nos acompanha – é o nosso amor, o amor que se lhe tem. não é para perceber. é sinal de amor puro não se perceber, amar e não se ter, querer e não guardar a esperança, doer sem ficar magoado, viver sozinho, triste, mas mais acompanhado de quem vive feliz. não se pode ceder. não se pode resistir.
a vida é uma coisa, o amor é outra. a vida dura a vida inteira, o amor não. só um mundo de amor pode durar a vida inteira. e valê-la também.”
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