São como a família: aos vizinhos, não os escolhemos. E se os pudéssemos escolher, não escolheríamos, embora gostemos daquele conforto psicológico de que, desde que não nos chateiem, até os toleramos, e até é confortável sabermos que estão lá.
Já ouvi muitas histórias de boa e má vizinhança. Vantagens e desvantagens de uns e outros. Como na equação da alquimia da perfeição: nada bate rigorosamente certo. Não há regra sem excepção, nem excepção que não provenha da regra. Haverá sempre um elemento químico a destoar, a causar combustão, a deslizar pelo pote.
E, ao vizinho, queremos saber a que horas sai, para não nos cruzarmos com ele.
E, ao vizinho, queremos saber a que horas sai, para não nos cruzarmos com ele.
A Graça, mãe da Cris, por exemplo, sempre falava dos tempos em que vivia em Angola. Que saía para pedir açúcar e, se a vizinha não estivesse, entrava pela casa (que ficava sempre de fechaduras destrancadas) até à cozinha e vasculhava os armários em busca dos doces grãos.
Se ovos também faltasse, poderia sempre aviar-se com alguns para que o bolo ficasse mais compostinho. Aqui, a separação entre espaço público e espaço privado de vizinhança é um fio invisível, às vezes, inexistente.
Em Paraty, por exemplo, certa vez, ouvinte atenta a bordo de um barco de pescador, um bom homem disse-me quase a mesma coisa que a Graça, com a ressalva de que se a família da casa ao lado não tive tido sorte na faina e ele sim, haveria de deixar em casa dela (mesmo que não estivesse; com as mesmas portas sem trincos) uns peixes de sobra para o sustento dos próximos dias. Sabia ele, este bom homem, que se um dia lhe faltasse sustento, também, teria de sobra por mão vizinha.
Na Amazónia passa-se quase a mesma coisa. Farinha de mandioca como moeda de troca; peixe abundante nas mesas ribeirinhas.
Falamos de realidades remotas, mas o nosso bairro, pode ser, sabemos, a nossa aldeia. Se bem ou mal frequentada, isso são outras páginas de história.
Falamos de realidades remotas, mas o nosso bairro, pode ser, sabemos, a nossa aldeia. Se bem ou mal frequentada, isso são outras páginas de história.
E, dependendo da boa convivência da vizinhança, podemos sempre esperar auxílio e o tal confortozinho psicológico. (Não queremos conversa, mas, às vezes, é bom sabermos que lá estão.)
Ainda que não tenha havido nem testes psicotécnicos, nem terapia de grupo, ou sequer provas de liderança, exames sanidade e capacidade de sociabilização, posso afirmar que os meus pais tiveram sorte na rifa dos bons vizinhos. Já vieram, certa vez, pedir açúcar; eu já acudi um incêndio na casa ao lado, passando com distinção o teste de calma e pragmatismo a quem precisou; já chamei o 112 para salvar a vizinha que engoliu água oxigenada, em vez de água de tremoços (para baixar os níveis de insulina, pois é diabética e reza a sabedoria popular que essa água tem benefícios terapêuticos nesse caso); quando um alarme dispara algum vizinho há-de ligar, avisando; se algum movimento suspeito se dá na rua, o clube dos vizinhos, asseguro, tomará vassouras, ancinhos e sacholas para uma campanha de defesa civil.
O único elemento que destoava deste clube restrito já foi expulso do bairro por divórcio com a vizinha da frente (nem ela aguentou) - recordo-me que chegou a ameaçar o meu pai, porque o nosso cão se soltava com facilidade, saltando muros, (era dócil, mas de porte ameaçador e os outros não são obrigados a saber sobre a docilidade do animal, está certo) e deambulava pela rua, erguendo a bandeira liberdade correndo trôpego e de língua de fora; ...
Com vizinhança estamos, então, por ora entendidos. Mas e quando o assunto mete inquilinos?
O ano passado dormi em casa de L. no Rio. A casa estava vazia, pois estava pronta para ser alugada num lugar incrível. L. estava agora num apartamento mais pequeno, mas como os pais fossem passar o fim-de-semana ao Rio, ele precisava de todo o espaço para os receber, o que significava que tinha (a mim e à T.) de nos expulsar durante o final de semana.
A solução mais económica foi então, a casa vazia, pronta para alugar, no lugar incrível. Munimo-nos de colchonetes (e preparação psicológica para a água fria do chuveiro) e lá fomos para o eco da casa da Urca. L. avisara só que, domingo de manhã, um casal iria ver a casa. Era, apenas, sexta-feira.
Até lá, sem problema. Poderíamos perfeitamente sair para o pequeno-almoço, nessa quente manhã domingo, enquanto a casa era explorada por possíveis inquilinos.
E o pai de L. estava avisado que duas portuguesas estavam acampadas no apartamento. Anuíra, apenas incomodado por não nos poder receber melhor. Tranquilo. Tudo by the book.
O Rio a chamar para a rua. Lapa, festa, e noite carioca. Madrugada já a querer ser dia e nós a chegar a casa. A A. também lá ficaria, por isso, rumámos as três para a casa vazia, no lugar incrível, a ver Cristo-Rei. Só queríamos a colchonete, não importava o quão dura e desconfortável fosse.
Quatro horas depois começamos a ouvir barulho cá fora. Eram umas 10 horas, por aí. Uma mulher aos berros, em tom de escândalo. Tom ainda mais elevado, quando falava ao telemóvel. Nenhuma de nós, realmente, foi perceber o que se passava, pois com tanto cansaço, tudo aquilo que menos nos preocupava era uma mulher exaltada, montando coreto para o seu show pessoal de TPM.
Até que nos apercebemos de alguém a mexer na fechadura. Foi quando me levantei para ver quem era e quem quer que fosse já tinha descido e abandonado a fechadura. Segundos depois meu telefone tocou. Atendi. Era L., afinal, dizendo que a imobiliária não o avisara e que a mulher tinha mudado de planos e, em vez de domingo, decidira visitar a casa sábado.
Sem problema. Que viesse. Eu ia avisar as meninas. Mas L. insistia que eles já estavam à porta de casa. Eu dizia que não, pois ninguém tocara à campainha. Mistério desfeito: sem luz, a campainha não toca. Desci e não vi ninguém. Nem show de TPM, nem homens mistérios que mexem em fechadura, nem sinal de ali, momentos antes, a casa tinha caído e não tinha sobrado ninguém para contar os alicerece e despojos da implosão.
Minutos depois o pai de L. liga-me, simpático. Claro que poderia aparecer. Meia hora depois chegava.
- Eu queria vos pedir desculpa. Houve um problema de comunicação com a imobiliária e eles não nos avisaram da visita. Não é a primeira vez que a gente se desentende com eles. Mas o pior foi o barraco que a mulher fez aqui em baixo, por não conseguir visitar a casa.
Respondi que realmente ouvira uma mulher a barafustar, exaltada, mas nunca iria imaginar que teria que ver com a visita da casa, e que quando L. me ligou já ninguém estava.
- Não, fica tranquila. Sem problema. Eu vim mesmo pedir foi desculpa para vocês pelo que aconteceu, pois foi tudo um mal-entendido.
-Sim, mas assim você perdeu o negócio.
-Que nada! Imagina eu ter uma inquilina que nem ela: se por isto ela fez um barraco, imagina como seria daqui para a frente. Assim foi um bom teste para eu perceber que nem a pau ela moraria aqui!
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