sexta-feira, outubro 24, 2008

Terra em transe, terra de grilos

Texto e Fotos por Vanessa Rodrigues, no Mato Grosso do Sul


Ela não sabe onde pôr as mãos. Inclina a cabeça como se verga para o homem, que não é o dela, mas gostaria. Pára a cada sulco na terra. Inchada, suada. Sobrolho franzido. Vermelha como a ardência que se cola às mãos que não sabe o que lhes fazer. Unhas encardidas do solo azedo. Fértil. Respira ofegante, mas esconde em soluços. Encolhe-se e a pele minga, as rugas secam. Não sabe o que são previdência, salário, direitos, Constituição, estado, saúde. E longe está de precisar de um acordo ortográfico. As únicas ortografias que conhece são as da terra. Não reclama dos erros das estações. Da chuva que alaga as plantações. Do sol que queima a pele e o ventre do campo. Só vive dele, com sapatos gastos que calça de sol a sol, a única luz que conhecia até há um ano.

Glicínia Trindade. São as únicas palavras que murmura com a boca enrolada, como se o som saísse abafado por uma almofada. Sorri com os olhos. Basta-lhe. O resto são grunhidos que substituem as anuências ou as negações monossilábicas das perguntas. Não lhe façam muitas. Não está habituada a falar, mas recebe-nos com tudo para dar, menos a terra.


Justino lava os pepinos. Verdes, divorciados da terra. Arrancados com as mãos, onde a sachola não chega. Não há máquinas, tractores. Os adubos são bosta de vaca. O chão está alagado das últimas enxurradas. E a luz veio, pela primeira vez, o ano passado, no pacote do progama governamental brasileiro “Luz para Todos”, prometendo chegar a esses redutos longínquos e rurais. Ela veio como um vício para prolongar o dia, que se fazia de sol, velas e lanternas. Agora há fogão, lâmpadas, televisão. É lá que passam Os Simpsons. Antes era a cachaça e os cigarros. Glicínia pede um, dois, três a T. Justino arranca-os da mão dela. Vai guardar, diz. Tudo guarda, até ela. Se votasse seria num "homem-justo", quase como seu nome!


Chega o jipe desconfiado. Pára do lado de fora, em frente à cancela de madeira. Observam se avançam, se ficam, ou se se põem a monte. Justino dá o sinal “livre-de-perigo”. Justino sai. Há negociata. Umas terras quaisquer que têm de ser apropriadas. Os documentos estão preparados. A grilagem está garantida. Os papéis vão ser forjados. Tempos depois os grilos tratam do resto no fundo de uma gaveta e é como se a herança sempre levasse o nome de alguém naquelas propriedades. Muito, muito dinheiro, promete o homem-jipe a Justino. Assoberbado de euforia, ansioso por se pôr a fazer contas, num jeito nervosinho que denuncia que a negociata tem algo mais. Bonacheirão, pele suja, seboso, barriga mole gelatina e uma cuspidela para o chão promíscuo com a lama e os restos fecais bovinos. O homem hesitante “entro-fico” ri-se em tom de “não-te-esqueças-de-pagar-o-que-deves-senão-algo-pode-acontecer”. Justino acanha-se. Verga-se como Glicínia para ele. Apertam a mão. Fecha a cancela. Conta que é terra de ninguém. Que por isso faz um favor ao governo, o mesmo que Glicínia não conhece, não sabe, não tem ideia do que seja. Ela voltou para a ardência das mãos. Ele corta as couves. Engole a cachaça. E daqui a pouco é noite. Os Simpsons vão começar!

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