Como sempre Juscelino acordou hoje com a noite cerrada. O silêncio na rua, ainda o acompanha. Não é que queira fazer-lhe companhia, mas assim o manda a obrigação. Há muito papel espalhado pela cidade. Alguns quilos podem render-lhe uns bons reais. Comprar pão, chop, arroz. As pequenas coisas. (Ou pequenos luxos?). E quando a cidade acorda já ele caminhou mais de 10 quilómetros. Vagueando. Olhando o chão precioso.
Arrasta o atrelado com as mãos. São crus relevos escuros, rasgados pelo ar, sulcados pela chuva, poluição. E até mesmo a saliva que muitas vezes teve de fazer correr para sarar uma pequena ferida. O ferro do atrelado é rústico, áspero e corta se não for levado com jeito e perícia. As mãos voltam-se para trás e suportam com a palma a pega que vai arrastar o carro de duas rodas, puxado a força humana. A dele.
Arrasta o atrelado com as mãos. São crus relevos escuros, rasgados pelo ar, sulcados pela chuva, poluição. E até mesmo a saliva que muitas vezes teve de fazer correr para sarar uma pequena ferida. O ferro do atrelado é rústico, áspero e corta se não for levado com jeito e perícia. As mãos voltam-se para trás e suportam com a palma a pega que vai arrastar o carro de duas rodas, puxado a força humana. A dele.
Quando caminha, o corpo magro parece ganhar outra pujança. Os braços, musculados, mas traídos pelo manto rugoso da idade, unem a garra para arrastar as várias placas de papelão âmbar (sujo e molhado). Agora Juscelino está no meio do trânsito. Em plena grande via de São Paulo. Por coincidência, Juscelino queda-se no meio do trânsito que flui, em plena Avenida de um homónimo seu: Avenida Juscelino Kubitscheck. Ele ignora. Nem lhe interessa o nome da rua. Para ele uma placa qualquer como todas as outras. “Talvez publicidade”, poderá pensar. Não é fácil entrar no universo dele. Nunca aprendeu a ler e talvez nem saiba para que serve. Tem outras preocupações. Um universo só seu e na mesma proporção respeitável. E do qual todos nós podemos ser, portanto, analfabetos. Mais: iletrados. Porque ele pode ser mestre.
O semáforo de peões dispara vermelho. Ele passa assim mesmo. Ignora. Não estranha o movimento dos carros. É que está mais do que habituado à azáfama do tráfego.
Com a mão disponível do lado esquerdo; e suportando o peso do atrelado nas costas; Juscelino gesticula tal qual um sinaleiro para ordenar os carros a passar. É como quem diz: “Passem, Passem. Não me importo. Têm mais pressa do que eu. Tenho tempo. Aliás todo o tempo do mundo!”. Continua a gesticular. O sinal está verde para os carros. Eles circundam a avenida. E lá está ele, mesmo no meio do trânsito, de cabelo grisalho e tez morena. Camisola amarela, calções de ganga e havainas pretas. Depois, há um hiato no trânsito, ainda que o sinal se quede verde. Juscelino avança. O atrelado parece agora mais leve, porque ele descansou ali no meio do trânsito sem se aperceber. Teve uma pausa na sua marcha. E agora caminha, arrastando o pequeno carro velho atrás de si, deixando para trás a placa da grande avenida.
1 comentário:
Adorei a descrição. Parece que estou a ver o Juscelino ao vivo! Bjs
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