Lis
é um ser-lugar estranho, de realidades paralelas, e a literatura é
uma droga pesada. Há a obrigação de a partilhar, sob pena de
pecados capitais, que jamais serão perdoados por Hades. Não admira
que estes dias a nossa heroína, escapada da quase prisão perpétua
com escritores em crise existencial, numa ilha desconhecida, cujas
circunstâncias ainda estão por apurar (terá ela escapado com
realismo mágico, técnicas Pessoanas, surrealistas?), se tenha
enternecido com o conto real que se segue.
A
própria história (con)funde-se com as que coleciona. Como esta:
todo o prédio que chegou a albergar uma loja de fotografia por cima
do café "A Brasileira”, no Porto, vai ser recuperado nos
próximos meses. Urge, por isso, esvaziar as divisões. Lá dentro,
num dos andares, no bafiento tempo enclausurado, há o que resta de
uma vida, centenas de máquinas fotográficas novas que chegaram a
velhas sem serem usadas, com o nome dos donos (que interessante seria
ir atrás deles 50 anos depois), cheiro a químicos, polaroides,
diapositivos e muito pó. Há, pois, o ranger da madeira do chão,
tupperwares, fantasmagórica presença dos espectros que ali um dia
sonharam com o futuro, que agora somos nós, no presente do
indicativo, a sonhar com o advir. Ciclo irreversível, constatação
da nossa finitude. Tanto espólio ali abandonado para escrever com a
luz, que a fotografia assume-se como uma espécie de literatura
perdida. O que será que aconteceu para que tanta riqueza fosse
deixada para trás?
A
vida é, pois, este fio ténue, em que colecionamos, amontoamos os
nossos objetos-paixões. Por isso, Lis começou a preocupar-se com o
destino que os seus livros terão um dia quando ela for pó. Em que
momento deve começar a doá-los para que sobrevivam ao futuro e
levem com eles um pedaço dela?
Última crónica de Vanessa Rodrigues para o Semanário Grande Porto, página Bairro dos Livros,
iniciativa da editora CulturePrint, em alternância semanal com Jorge
Palinhos, Rui Lage, Rui Manuel Amaral.
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