domingo, setembro 29, 2013

Há gente que nos come até aos ossos, que nos estropia o coração, não... esperem, há gente que nos esventra, adentro, que mete a mão até às vísceras, e estraçalha, corrói, ácido (mistura fluorídrico com pentafluoreto de antimónio), não esperem, há homens, não-homens, que devoram o coração, que detêm o batimento cardíaco, que nos amordaçam, silenciam (tanto ruído na cabeça deles esse nada), que nos engolem para esse vazio em que pensam, em que veem, em que sentem, em que pesam o mundo de si, que não existe, que não é, não está, não pende na existência de agora, desta imensa impermanência que é ir-se.

A imortalidade

Lis é um ser-lugar estranho, de realidades paralelas, e a literatura é uma droga pesada. Há a obrigação de a partilhar, sob pena de pecados capitais, que jamais serão perdoados por Hades. Não admira que estes dias a nossa heroína, escapada da quase prisão perpétua com escritores em crise existencial, numa ilha desconhecida, cujas circunstâncias ainda estão por apurar (terá ela escapado com realismo mágico, técnicas Pessoanas, surrealistas?), se tenha enternecido com o conto real que se segue.
A própria história (con)funde-se com as que coleciona. Como esta: todo o prédio que chegou a albergar uma loja de fotografia por cima do café "A Brasileira”, no Porto, vai ser recuperado nos próximos meses. Urge, por isso, esvaziar as divisões. Lá dentro, num dos andares, no bafiento tempo enclausurado, há o que resta de uma vida, centenas de máquinas fotográficas novas que chegaram a velhas sem serem usadas, com o nome dos donos (que interessante seria ir atrás deles 50 anos depois), cheiro a químicos, polaroides, diapositivos e muito pó. Há, pois, o ranger da madeira do chão, tupperwares, fantasmagórica presença dos espectros que ali um dia sonharam com o futuro, que agora somos nós, no presente do indicativo, a sonhar com o advir. Ciclo irreversível, constatação da nossa finitude. Tanto espólio ali abandonado para escrever com a luz, que a fotografia assume-se como uma espécie de literatura perdida. O que será que aconteceu para que tanta riqueza fosse deixada para trás?
A vida é, pois, este fio ténue, em que colecionamos, amontoamos os nossos objetos-paixões. Por isso, Lis começou a preocupar-se com o destino que os seus livros terão um dia quando ela for pó. Em que momento deve começar a doá-los para que sobrevivam ao futuro e levem com eles um pedaço dela?

Última crónica de Vanessa Rodrigues para o Semanário Grande Porto, página Bairro dos Livros, iniciativa da editora CulturePrint, em alternância semanal com Jorge Palinhos, Rui Lage, Rui Manuel Amaral.

Vora-cidade

Que voracidade é esta que alcança? Como cansa, pés no chão, arrastados, que se empurram, e o corpo vai, segue apressado, é levado, dissipado, como se dissolve na massa de gente - e os cheiros, tão plenos, tão humanos, escatologicamente humanos; vão de metro, fechar os olhos é ver com o tato, seguir o olfacto; e a porta fecha, a gente vai, a gente segue, a gente, a massa que é gente, multidão apática, e o telefone toca, não alcanço, como cansa estar com gente, ser gente, mãos no ar, agarradas, seguradas, tateadas, e os olhos daquele homem, eu desvio, empurro a indiferença, esquecera-me que aqui se olha mais, que a cidade nos come, engole, regurgita; que a cidade vorazmente suga, sôfrega, veloz, tão rápida que nos perdemos na lentidão de nós. Onde íamos?

quinta-feira, setembro 05, 2013

O lugar do outro#1

Olhar o outro também é querer silêncio. É perceber o que somos, dentro de nós, da cultura que temos, estamos, intuímos; dos medos que temos, do lugar que ocupamos, do caminho por onde queremos ir, onde queremos estar. Olhar o outro, quando estamos longe das nossas referências por um tempo, é analisarmos a etnografia que tecemos, é sair de nós, para ir voltando, devagarinho, e voltar a ficar despertos para a peça que somos (pessoas, criaturas, essências, almas) na cidade que fazemos. 

Talvez, por isso; certamente por causa disso, estes primeiros dias - de ser e estar como quem regressa de uma epopeia longínqua- voltam a ser um retorno à observação participante. É perceber que o Porto tem entradas de prédios nas quais nunca tinha reparado e ter vontade de fazer as unhas naquele cabeleireiro manhoso que fica um prédio antigo só porque a porta é gira, vintage, numa madeira envelhecida, ao menos mais velha do que eu. 

É ouvir, atentamente, as pessoas que entram no autocarro e se cumprimentam e mudam de lugar para ficar perto de uma amiga que acabou de entrar; é dizer Bom-dia a desconhecidos, é perceber que somos mesmo muito afetuosos, simpáticos, porque dizemos olá a desconhecidos e cedemos lugares no autocarro. É reparar que há jardins com árvores seculares, que hão-de ficar quando nós nos formor; é compreender que há esplanadas abertas às 9h30 da manhã com turistas felizes a contemplar as ruas; é percepcionar que o cinzento das ruas é apenas cor de pantone de pedras estilosas que não tira alegria às pessoas; é ver que somos sorridentes além fado, não interessa o quanto insistam em dizer o contrário; é sentir os cheiros a verde, a manhã submersa que há-de evoluir para um sol à sua maneira; é notar que há bibliotecas sossegadas para pousarmos as ideias e o pensamento; é pedir um café com um sorriso e tirar o siso sério à senhora que o serve; é sorrir porque o vizinho do lado, que também café vai tomar, pediu para ficar a dever um cêntimo à senhora que antes não sorrira, que lhe responde que ele vai ter que o pagar com juros, porque a brincadeira aí começa. É tudo isto nuns instantes de manhã, porque estava atenta, porque ainda não me deixei contaminar pelo vício que a habituação quotidiana teima. É aproveitar, em silêncio, olhar o outro.

quarta-feira, setembro 04, 2013

As minhas viagens

Na impossibilidade de encontrar a edição portuguesa deste livro do jornalista polaco Ryszard Kapuscinski - vénia que me gusta - e de viajar assim muito, contento-me com a edição espanhola, por supuesto; com hibernações e outras conspirações da alma, por aí, tendo por companhia mestres consagrados, ainda que também contestados perante a veracidade de suas histórias. Às vezes, como ele, dá vontade de conhecer mais mundo, escrever sobre ele; outras vezes nada sobre o mundo e contento-me com o sossego do lar, em que nada importa, a não ser o ruído dos pensamentos tão quedos e serenos que essa imensidão pode esperar. Não há histórias impossíveis; o mundo é tão repetitivo na forma que assusta; está tudo interligado, desde Heródoto, desde a Grécia, desde o Big Bang; desde o momento em que nos cortam o cordão umbilical.

 

O mistério da vizinha da frente

O António nunca a vê. Mas eu sim. Aparece sempre aprumada, adivinho até que cheirosa, com a sua água-de-colónia de alfazema que há anos se dilui nas roupas, nesses tecidos que outrora duravam gerações, como as roupas da minha avó, sempre impecáveis, sem manchas, borboto, ou desgaste de malhas. Não entendo. As roupas antigamente duravam mais. Eram para uma vida inteira. Como os trabalhos, as uniões e as casas. Deve ser o caso da casa da vizinha da frente. Rega as sardinheiras, as vermelhas, as cor-de rosa e as cor-de-vinho. Rega-as depois de varrer a varanda. Mas sempre que chamo o António para provar que a vizinha da frente existe, que não é fruto da minha imaginação lírica, literária, ou infantil, ela trata de desaparecer. Sinto um vazio. Sinto que a senhora me trai, esfumando-se. E penso que talvez ela seja mesmo imaginação de um conto que recrio diariamente. E ele diz-me que tem razão, que a vizinha não existe. Que já existiu, porém, mas que agora deve viver num lar, onde faz tricô. 

Hoje vi-a a abrir a porta, a receber uma amiga. Falou com ela demoradamente, depois subiu e foi varrer a varanda, regar as sardinheiras, com aquela roupa sempre impecável e o cabelo de cabeleireiro: aquele cabelo grisalho violáceo, seguro por uma laca muito espessa que nem o vento consegue desfazer. Vi-a e pude jurar que me acenou. Claro que ninguém me acreditou.

Pornografia ficcionada


Escrever é a nudez absoluta, é o escritor entrar na própria pele para dilacerá-la, viver a vida dos outros como sua, chorar, angustiar, humilhar e ofender, um crime e castigo, abismo, absolvição, terapia, bisturi trémulo à volta do corpo, ser pulha e gangster, falhado e vitorioso, orgulho e preconceito, fundamentação da metafísica dos costumes. Escrever é perscrutar o escuro endógeno para a lucidez das palavras, uma caverna infinita com fio-miragem de luz, um sufoco, ardência, arritmia, densa penumbra no horizonte de um mar revolto, solidão de farol, eco de montanha, gota na imensidão da selva, ulo silencioso que brama dos confins da terra, antítese da lógica nos primórdios da civilização, cordilheira de intransponível morfologia.”
É Lis quem escreve tudo isto. Foi sugada para uma ilha deserta com escritores, depois de “A revolta dos livros”, o mês passado. Trabalha como antropóloga diligente, enganando a Eternidade. Não sei como as missivas chegam até mim. Escrever tem mistérios profundos que a própria tecnologia desconhece.

Ela observa e percebe a verdade dos grandes escritores como homens nus, ao mesmo tempo que habitantes de planetas personalizados - onde a linguagem se confunde-, mas subjugados à impotência, quando percebem que nada inventam a não ser a capacidade de ludibriar uma geração que não tem memória, incapaz de estar ciente de todos os truques e artimanhas já usadas por escritores. José Saramago, por exemplo, é o ilusionista das utopias: os seus mundos não existem e são toda a geografia da verdade que temos ao nosso redor. Lis percebeu-o: os escritores são pornógrafos de ficções, um veneno, enganando-nos com as verdades que não queremos ver. Escrever é toda a escatologia do mundo. Leitores, sois seres explorados pelas neuroses dos escritores, seres perigosos. 

Crónica de Vanessa Rodrigues, publicada a 30 de Agosto 2013, na pág. Bairro dos Livros, iniciativa Culture Print, no Semanário Grande Porto, em alternância com Rui Manuel Amaral, Rui Lage e Jorge Palinhos.