1. Nunca me dei bem com receitas. Acabo sempre por adulterar as gramas de açúcar, de sal, de arroz, eu sei lá. É por isso que gosto de inventar na cozinha. Há-de haver, com certeza, algum estudo, tese, teoria filosófica, especulação ancestral hermeticamente enquadrada na transdisciplinariedade de convergência de algum "-ismo" ou "-logia" que comprove que cozinhar é uma extensão da forma como encaramos a vida. Surge-me esta filosofia de botequim enquanto faço sopa. A minha sopa nunca fica da mesma maneira, porque nunca compro os mesmos ingredientes e até gosto de inventar. Lavo a louça e apercebo-me de que, na vida, sou um pouco assim. Procuro sempre maneiras de fazer diferente e irritam-me as regras quadradas, a hierarquia e a mediocridade. Mas isso é outra história. Alinho tudo isto num axioma doméstico enquanto ponho o resto do detergente com água no esfregão, desengordurando a panela. Será que cozinhar revela realmente muito sobre nós? O que diria Freud, Lacan, Piaget, Jung e Alfred Adler e sua psicologia do desenvolvimento individual? Será que deveria convidá-los para jantar? Que prato servir?
2. Uma das coisas que tenho aprendido para ser feliz é não dar demasiada importância ao passado e às pessoas que eu deixei que me magoassem. A idade da ingenuidade já passou e um dia temos de aprender a dizer não e sair a tempo, antes que a areia movediça nos sugue a força. Outra coisa é dançar no meio da sala, descobrir uma música nova todos os dias, encarar o dia sorrindo, fazer bolas de chiclete e rebentá-las, tirar os sapatos e encarar a areia da praia no Inverno, fazer surpresas a quem gostamos, mandar mensagens estapafúrdias aos amigos com fotografias ridículas, saltar no colchão da cama. Enfim, não levar a vida tão a sério e não deixar que aqueles que a levam nos pesem com sua indiferença e julgamento. Outra delas é fazer sopas coloridas, e bolos com açúcar a mais, mesmo que as teorias da Gestão e dos Recursos Humanos digam que deveria ser mais coerente na minha forma de cozinhar. Gosto de deixar a vida mais cromática e de a tornar doce. Pode ser que Freud assim explique.
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