quinta-feira, julho 18, 2013

Vanessa viaja com Vanessa

Novo texto que escrevi a convite do blogue da editora brasileira Cosac Naify, a propósito da reedição de "O Livro Amarelo do Terminal" [Rodoviário do Tietê]. Levei o livro a viajar nos transportes coletivos do Porto, enquanto exercitava a Literatura Portátil. O resultado pode ser lido neste link, pela batuta de Antônio Xerxenesky, agora no comando deste blog depois de Daniel Benevides. Boas viagens! :-)

Minha vida com Vanessa Barbara

A gente não se conhece, apesar das coincidências: temos o mesmo nome, somos jornalistas e escrevinhadoras, gostamos dos ínfimos detalhes da vida, como moscas ziguezagueantes, ávidas de cenas da vida real e fazemos aniversário no dia 14, embora em meses diferentes. Isso me dá alguma vantagem para quebrar o gelo.
Nunca nos vimos, muito embora tenhamos galgado já as mesmas calçadas. E vivemos o mesmo surto psicótico: observar o Terminal Rodoviário Tietê, em São Paulo (cidade onde vivi durante 5 anos), a segunda maior rodoviária do mundo (parece que a primeira é em Telavive, Israel), percebendo que é uma espécie de país neutro, uma súmula de Brasil, um tratado etnográfico. Bastam cinco minutos e até o escritor italiano Italo Calvino – autor de Cidades Invisíveis – ficaria louco, achando que todas suas urbes caberiam nesta anatomia. Regra básica: para entender esta central de “busões” temos de ser, porém, observadores participantes. E agora me cai nas mãos a missão de escrever sobre o livro de Vanessa. Como se escreve sobre um livro, no qual nos revemos, ou quem sabe, podemos mesmo ser personagem invisível?
A estação rodoviária Tietê (foto de C. Alberto)
Talvez a escritora e jornalista Vanessa Bárbara (VB) tenha me visto enquanto fazia trabalho de campo. Talvez a gente tenha se cruzado, lado a lado, observando a “cidade de coisas perdidas”, como ela apelida o Terminal. Talvez, quem sabe, tenhamos estado na mesma fila, ou pegado o mesmo ônibus. Em rigor, se passarmos pelo Terminal Tietê, qualquer um de nós pode ter partilhado um fragmento de vida com a autora. Não só porque o livro é carnalmente real, como também poderia ser o divã de todos nós, metafisicamente contemporâneo.
Em todo o caso, minha vida com Vanessa debaixo do braço mudou um pouco. Deixa eu explicar melhor: minha vida com O livro amarelo do Terminal de VB se transformou em literatura, verdadeiramente, portátil, pela cidade do Porto, em Portugal. Virou uma espécie de ficção andante na primeira pessoa. Vamos por partes: o livro veio de avião, até Portugal, cruzando o Atlântico, quiçá sua estreia na Europa, na mala de dois amigos queridos, que mo compraram, porque na Cosac Naify ele estava esgotado e bem que, finalmente, merece esta reedição para acabar com o jejum.
Depois, é bom que se diga que eu levei “o Terminal” para passear pelos transportes públicos portugueses. Primeiro foi de ônibus, tomando a linha 602. Me acompanhou, ainda, de metrô, pegando a linha verde, até a estação da Trindade, outro centro nevrálgico da muvuca portuense.
Alguns passageiros, como eu, acharam estranho meu livro nas mãos (cheio de colagens e frases na capa e contracapa), sob meu olhar grudado em páginas amarelas (aliás, nome antigo para listas telefônicas comerciais), e tentavam driblar minha distração para ver se conseguiam decifrar o enigma da capa tão esquisita. Até porque, livro amarelo em Portugal é sinônimo de livro de reclamações.
O livro de Vanessa também tem gente reclamando, é um fato, mas, sobretudo, filosofia de botequim, gente graduada em vida e relações (ralações) humanas; tem gente simpática, preguiçosa, perdida, flirt, busologia (estudo de ônibus, claro), sapato velho, perdidos e achados, xerifes, caminhoneiros, faxineiros, arroz com feijão, notícia de jornal, amigos que nunca se viram, e até Gerador automático de Reportagens. E ela, a repórter de serviço, precisou de um ano para gerar esta longa-metragem da prosa-verdade, muita conversa fiada, aprendizado de telemarketing e anotações q.b., para dar conta do recado com tantos dados e histórias cruzadas, inteligentemente, sobre o Terminal. Nada é escrito à toa e sem um sentido de ligação.
Depois, Vanessa se mune de episódios caricatos:
São mais de 2 mil informações fornecidas diariamente pelas atendentes do balcão (117 por hora, quase duas a cada minuto). Respostas a todo o tipo de pergunta, feitas pelas pessoas mais incomuns e em qualquer idioma. ‘Você conhece aquela teoria de que o ser humano consegue se comunicar em qualquer lugar?’, é o que Rosângela responde, quando lhe perguntam se ela sabe falar inglês. Não, nenhuma delas sabe um idioma estrangeiro, conhece a linguagem de sinais ou decorou o tomo L da enciclopédia, mas parece não fazer diferença.
Poderia ser o design a grande originalidade deste livro (não deixa de o ser, claro), que resulta de um trabalho de fim de curso e a estreia da autora na literatura, mas há vida além do julgamento pela capa. A grande proeza desta obra é, sem dúvida, a mistura equilibrada de estéticas literárias: ora se serve do jornalismo narrativo, ora da técnica de roteiro, passeando pelo discurso direto e indireto, do grafismo neoconcretista, da técnica do microconto, para misturar recursos estilísticos como a metáfora, as onamotopeias, e a enumeração sui generis que abunda num terminal onde a overdose é apenas um eufemismo para a iniciação a São Paulo.
Isto só prova que esta paulistana balzaquiana, além de dominar muito bem os recursos da Língua Portuguesa, sintaxe, semântica, gramática, e estéticas literárias, sabe brincar com as palavras, reinventando um estilo eclético, para este livro-reportagem.
Depois, sua cadência de prosa acelerada, numa contemplação quase sem fôlego, por vezes, é um retrato fiel da fugaz São Paulo, com seus cerca de 15 milhões de habitantes. Por isso, esse terminal só pode ser a loucura desenfreada, como se estivéssemos olhando um filme em fast-forward. Só que é a vida real, nessa aceleração. Uma análise cirúrgica sobre a psicologia e os hábitos humanos, uma microscópica dissecação das rotinas quotidianas.

* Vanessa Rodrigues é jornalista independente. Nasceu em 1981, em Portugal. Viveu cinco anos em São Paulo, como correspondente da rádio portuguesa TSF e jornal Diário de Notícias. Atualmente colabora com a TSF, Revista (jornal Expresso) e Notícias Magazine.
 

** A foto da rodoviária Tietê foi extraída daqui.

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