A gente não se conhece, apesar das coincidências: temos o mesmo
nome, somos jornalistas e escrevinhadoras, gostamos dos ínfimos
detalhes da vida, como moscas ziguezagueantes, ávidas de cenas da vida
real e fazemos aniversário no dia 14, embora em meses diferentes. Isso
me dá alguma vantagem para quebrar o gelo.
Nunca nos vimos, muito embora tenhamos galgado já as mesmas calçadas.
E vivemos o mesmo surto psicótico: observar o Terminal Rodoviário
Tietê, em São Paulo (cidade onde vivi durante 5 anos), a segunda maior
rodoviária do mundo (parece que a primeira é em Telavive, Israel),
percebendo que é uma espécie de país neutro, uma súmula de Brasil, um
tratado etnográfico. Bastam cinco minutos e até o escritor italiano
Italo Calvino – autor de
Cidades Invisíveis – ficaria louco,
achando que todas suas urbes caberiam nesta anatomia. Regra básica: para
entender esta central de “busões” temos de ser, porém, observadores
participantes. E agora me cai nas mãos a missão de escrever sobre o
livro de Vanessa. Como se escreve sobre um livro, no qual nos revemos,
ou quem sabe, podemos mesmo ser personagem invisível?
- A estação rodoviária Tietê (foto de C. Alberto)
Talvez a escritora e jornalista Vanessa Bárbara (VB) tenha me visto
enquanto fazia trabalho de campo. Talvez a gente tenha se cruzado, lado a
lado, observando a “cidade de coisas perdidas”, como ela apelida o
Terminal. Talvez, quem sabe, tenhamos estado na mesma fila, ou pegado o
mesmo ônibus. Em rigor, se passarmos pelo Terminal Tietê, qualquer um de
nós pode ter partilhado um fragmento de vida com a autora. Não só
porque o livro é carnalmente real, como também poderia ser o divã de
todos nós, metafisicamente contemporâneo.
Em todo o caso, minha vida com Vanessa debaixo do braço mudou um pouco. Deixa eu explicar melhor: minha vida com
O livro amarelo do Terminal
de VB se transformou em literatura, verdadeiramente, portátil, pela
cidade do Porto, em Portugal. Virou uma espécie de ficção andante na
primeira pessoa. Vamos por partes: o livro veio de avião, até Portugal,
cruzando o Atlântico, quiçá sua estreia na Europa, na mala de dois
amigos queridos, que mo compraram, porque na Cosac Naify ele estava
esgotado e bem que, finalmente, merece esta reedição para acabar com o
jejum.
Depois, é bom que se diga que eu levei “o Terminal” para passear
pelos transportes públicos portugueses. Primeiro foi de ônibus, tomando a
linha 602. Me acompanhou, ainda, de metrô, pegando a linha verde, até a
estação da Trindade, outro centro nevrálgico da muvuca portuense.
Alguns
passageiros, como eu, acharam estranho meu livro nas mãos (cheio de
colagens e frases na capa e contracapa), sob meu olhar grudado em
páginas amarelas (aliás, nome antigo para listas telefônicas
comerciais), e tentavam driblar minha distração para ver se conseguiam
decifrar o enigma da capa tão esquisita. Até porque, livro amarelo em
Portugal é sinônimo de livro de reclamações.
O livro de Vanessa também tem gente reclamando, é um fato, mas,
sobretudo, filosofia de botequim, gente graduada em vida e relações
(ralações) humanas; tem gente simpática, preguiçosa, perdida, flirt,
busologia (estudo de ônibus, claro), sapato velho, perdidos e achados,
xerifes, caminhoneiros, faxineiros, arroz com feijão, notícia de jornal,
amigos que nunca se viram, e até Gerador automático de Reportagens. E
ela, a repórter de serviço, precisou de um ano para gerar esta
longa-metragem da prosa-verdade, muita conversa fiada, aprendizado de
telemarketing e anotações q.b., para dar conta do recado com tantos
dados e histórias cruzadas, inteligentemente, sobre o Terminal. Nada é
escrito à toa e sem um sentido de ligação.
Depois, Vanessa se mune de episódios caricatos:
São mais de 2 mil informações fornecidas diariamente
pelas atendentes do balcão (117 por hora, quase duas a cada minuto).
Respostas a todo o tipo de pergunta, feitas pelas pessoas mais incomuns e
em qualquer idioma. ‘Você conhece aquela teoria de que o ser humano
consegue se comunicar em qualquer lugar?’, é o que Rosângela responde,
quando lhe perguntam se ela sabe falar inglês. Não, nenhuma delas sabe
um idioma estrangeiro, conhece a linguagem de sinais ou decorou o tomo L
da enciclopédia, mas parece não fazer diferença.
Poderia ser o design a grande originalidade deste livro (não deixa de
o ser, claro), que resulta de um trabalho de fim de curso e a estreia
da autora na literatura, mas há vida além do julgamento pela capa. A
grande proeza desta obra é, sem dúvida, a mistura equilibrada de
estéticas literárias: ora se serve do jornalismo narrativo, ora da
técnica de roteiro, passeando pelo discurso direto e indireto, do
grafismo neoconcretista, da técnica do microconto, para misturar
recursos estilísticos como a metáfora, as onamotopeias, e a enumeração
sui generis que abunda num terminal onde a overdose é apenas um eufemismo para a iniciação a São Paulo.
Isto só prova que esta paulistana balzaquiana, além de dominar muito
bem os recursos da Língua Portuguesa, sintaxe, semântica, gramática, e
estéticas literárias, sabe brincar com as palavras, reinventando um
estilo eclético, para este livro-reportagem.
Depois, sua cadência de prosa acelerada, numa contemplação quase sem
fôlego, por vezes, é um retrato fiel da fugaz São Paulo, com seus cerca
de 15 milhões de habitantes. Por isso, esse terminal só pode ser a
loucura desenfreada, como se estivéssemos olhando um filme em
fast-forward. Só que é a vida real, nessa aceleração. Uma análise
cirúrgica sobre a psicologia e os hábitos humanos, uma microscópica
dissecação das rotinas quotidianas.
* Vanessa Rodrigues é jornalista independente. Nasceu em
1981, em Portugal. Viveu cinco anos em São Paulo, como correspondente da
rádio portuguesa TSF e jornal Diário de Notícias. Atualmente colabora
com a TSF, Revista (jornal Expresso) e Notícias Magazine.
** A foto da rodoviária Tietê foi extraída daqui.