Valter Hugo Mãe vai actuar no Festival Paredes de Coura, foi pop-star no Brasil, está de viagem para a Islândia, onde se passará o próximo romance, e vai ser pai de um novo livro em setembro. No futuro: quer escrever sobre Angola, actuar num filme. Vive nas Caxinas com a mãe e com quase 40 anos, o relógio biológico da paternidade despertou. É tímido, utópico e a literatura ajuda-o a congelar o tempo. O escritor português abriu-nos a porta da terra por uma tarde e entramos numa intimista metafísica dos costumes. Como se forma um tsunami literário?
Por Vanessa Rodrigues
O epicentro
Para chegar ao tsunami é melhor ir de metro até Vila de Conde, a norte. Verdes campos, uma ponte, praias ao longe, menos de uma hora. Mas ele ainda não chegou. Esperamos que venha. E esperar pelo tsunami é olhar o aqueduto, lá ao fundo. Além, há mar alto, ventania, como veremos, azulejos antigos, silêncio ermita, rede de pescadores, beijos roubados, histórias deste mundo e do outro, amor e ladainhas, enternecimentos, confidências. E vamos olhar isto e a vida dos outros, entrando, com o escritor Valter Hugo Mãe, o propalado “tsunami” literário, pelas vielas do passado, para falar de morte e de coisas estapafúrdias. E nada foi previsto pelo sismógrafo jornalístico: a força telúrica, como epicentro, com a vida a acontecer, nas Caxinas, onde mora. É aqui que gosta de estar, no útero, e onde vai comprar casa: para a serenidade, escrever livros, reinventar coisas “destrambelhadas” como músicas, crónicas que não usa, e uma infinidade de ideias retidas no bloco de notas do telemóvel-última -tendência. É aqui onde digita a maioria dos textos, “porque a qualquer altura dá-me uma ideia: tenho logo de a escrever: no comboio, no café, antes de dormir”. A NS regista: uma avalanche de palavras. Uma tempestade criadora. Ímpeto high tech! Até gostaria de entrar num filme. Era a isto que o Nobel da Literatura Portuguesa, José Saramago, se referia, também, quando o apelidou de tsunami, a propósito do livro premiado “o remorso de baltazar serapião” (quidnovi, 2006): ao ritmo acelerado da sua prosa, que, no fundo, é espelho da vida.
E chega-se ao tsunami estes dias, depois de ele chegar do Brasil. Traz leveza, uma certa anestesia jet lag e desabafo sobre os dias alucinantes em Paraty, na Festa Literária Internacional, FLIP, o maior evento do género. Fez sucesso como convidado este ano, enterneceu-se, sobreviveu ao assédio feminino, depois de ter expressado o desejo de ser pai. Vai sê-lo: em Setembro lança “O Filho de Mil Homens” (Objectiva/Alfaguara), espécie de extensão autobiográfica. O personagem principal é atormentado pela ausência da paternidade. Ele, no fundo, também. Por agora, lamúria, no rescaldo pop-star: falta de tempo. Já lá vamos, porque ele agora buzinou.
Segunda casa, passando por Angola
Chega de carro e leva-nos ao Pátio, sua segunda casa: um café de muita luz natural, um amigo que nos servirá e que, por acaso, estava a ver na internet a última entrevista do escritor. Ramiro interrompe para o cumprimentar. Pedimos; percebemos sinais de cansaço: um refrigerante com cafeína para o escritor. Música de fundo: rock no pátio que ele diz ser o de todas as casas. Fala compulsivamente e os olhos esverdeados atravessam as lentes dos óculos agarrando a atenção. Gesticula com elegância, a cafeína deu-lhe mais genica.
É a minha primeira pergunta, até aqui ele guiou: a imprensa brasileira chamou-te “escritor angolano”, incomodou? Um sim e, neste dia, um aborrecimento. “Vi umas coisas no Facebook e houve alguém que reclamou que eu dizia que aqui era português e no Brasil angolano.” Conforme as conveniências? “Isso ofendeu-me e frustrou-me. Os brasileiros não tiram do pé para a mão que Angola em 71 [onde nasceu, em Saurimo] estava sob administração portuguesa, e que quem nasceu lá nesse tempo não é angolano”. Diz que explicou o contexto a quem o entrevistava, mas mesmo assim houve um efeito wikipédia para jornalistas desprevenidos. Equívocos passados, porque, feitas as contas, no Brasil, Valter foi muito mimado; está grato.
E a relação com o país africano? “Tenho um plano de, mais cedo ou mais tarde, me aproximar de Angola e, inclusive, quero escrever um romance angolano; não quero morrer antes de ter dupla nacionalidade, mas neste momento seria uma falta de respeito, porque nunca fiz nada pelo país, não voltei mais lá desde que saí com dois anos e, por isso, seria abusivo de minha parte arrogar-me o direito de ser angolano.”
No fundo, é um homem sem terra: passou a infância em Paços Ferreira, fez-se homem nas Caxinas, não se lembra de nada de Angola e o Brasil é uma espécie de associação livre no imaginário infantil. Tem “memórias intuitivas”: perfumes, paladares. “A primeira vez que fui ao Brasil tive a percepção de que muitas coisas me eram familiares, de um tempo antes da vida. E a minha mãe confirmou-me que há determinado tipo de árvores, de flores e plantas que se tinha ao pé de casa em Angola, por isso essa sensação de reconhecimento”. Overdose sensorial e uma pista. A mãe, com quem mora, é mulher decisiva na sua vida, porto seguro.
Usar o amor, na literatura
Assume um ímpeto: gosta de estar rodeado de mulheres. Mas o que aconteceu em Paraty foi excessivo. Não estava preparado. Da mesma forma que não sabemos quantos livros é preciso um homem escrever até se tornar um tsunami literário, não sabemos o que é preciso para um homem se preparar para isto: bilhetes, e-mails, cartas, mensagens, cartazes de propostas. Mulheres preparadas para serem mães do filho que diz que gostaria de ter. Considera tudo um elogio.
Embora tenha chegado hesitante à sua primeira vez, na FLIP, foi a insegurança que o salvou: esboçou uma carta sobre a importância do Brasil que enterneceu meio mundo, porque naqueles dias de Julho, Paraty era o epicentro desse tsunami. Sim, tem vontade de ser pai, mas não abriu nenhum concurso. As coisas hão-de acontecer naturalmente para o escritor bem-humorado que tem sete sobrinhos, a adopta mais uns quantos dos amigos: o tio Valter. E o telefone toca, agora, várias vezes. Seria a primeira irmã. A segunda dali a meia hora. “Já me ligaram 50 vezes, mas eu agora não posso atender, já lhes ligo. A minha família é assim, somos muito cuscos da vida uns dos outros, é assumido, envolvemo-nos. Eles são muito importantes. Se conto alguma coisa à minha mãe, daqui a 10 minutos alguém me liga para saber pormenores”. Um universo circular, em que a família está contida. Mãe, duas irmãs, um irmão; o pai e outro irmão na memória afectiva: já partiram; tios, tias, primos, sobrinhos, amigos. “Eles participam muito dos meus livros, têm essa confessionalidade; mesmo os personagens circulam num determinado ambiente em que eles se transparecem e isso agrada-me muito: estar num lugar onde eu possa ser transparente, sem estar preocupado em ser inteligente. A minha mãe sabe as novelas que eu vejo.” Agora nem vê tanto: mas as actrizes brasileiras Malu Mader e Drica Moraes têm um efeito magnético sobre o escritor que detesta acordar cedo e adora o silêncio nocturno; mais este café entre amigos pela noite dentro. Expediente: “A minha melhor hora para escrever é à tarde”. E a metafísica de agora. “Progressivamente tenho menos medo de expor a minha sensibilidade e a minha forma de acreditar na vida, como ela vale a pena viver, porque de outra forma, é muito castrador e não quero que as pessoas me aborreçam com preconceitos e coisas inculcadas ao longo dos séculos, que nos limitam.” Seguimos, haverá cheiros e saltos incautos do terceiro andar.
Odores emotivos
Pausa para mais cafeína, como quem precisa olear as cordas vocais. Prova, agora, que é um personagem digno dos próprios livros e aforismos. Aos 10 anos quase foi “violado” por uma miúda, numas escadas que já não existem. Nunca mais a viu. Ela achava que estes olhos esverdeados, tímidos, tinham de ficar mais perto da boca. “O gang dela encurralou-me e eu tive de lhe dar um beijo”. Diz isto com certo regozijo: vencido o primeiro medo, até se poderia tornar um coleccionador de beijos furtivos. Mas do que ele gostava mesmo era de entrar com o amigo Chiquinho, na casa das pessoas. Traquinices, “inventar conspirações”. Anote: ele está a desafiar-se o tempo inteiro.
Agora, alguém se aproxima e esfrega o couro cabeludo nu de Valter. Este Pátio é um traz outro amigo também. Um tratado de amizade. E o som das máquinas de cimbalino, ao fundo, tal qual na adolescência quando os pais tinham um café. Mas é o cheiro a maçãs verdes que lhe trazem boas memórias. O ambientador do café familiar. “É um dos odores que mais me emociona e me soa àquele tempo de viver perto do mar; enfim, tudo o que tem a ver com essa idade de descobertas: de uma maior liberdade, do meu pai estar vivo, do meu irmão ainda viver e de morarmos todos juntos”. Da infância: vem o olor a madeira velha e seca.“Conforta-me andar na poeira da madeira”. Ao contrário do cheiro dos livros, hoje: “Uma desgraça, usam aquelas resinas que cheiram muito mal, e aquela coisa do cheirinho dos livros vai ficar para o passado. Às vezes as pessoas vêm pedir-me autógrafos e eu percebo que os perfumam. Acho piada e um dia ainda me vou dar ao trabalho de perfumar os meus livros”. Anotamos a promessa do homem que não usa perfume e não conhece o próprio cheiro. “Tenho uma amiga que gosta de me dar abraços porque diz que o cheiro da minha pele é maravilhoso e, enfim, fiquei muito vaidoso, mas foi a única até hoje e, rigorosamente, é só minha amiga”, brinca. Vem gargalhada.
Toda a bisbilhotice será perdoada
Um homem cuja fama até passa um pouco despercebido no lugar onde mora: mais à frente, quando sairmos do Pátio, uma senhora, enquanto Valter posava para as fotos, sussurraria para a filha: 'Eu acho que este senhor ontem apareceu na televisão, mas não sei quem é”. Um “cachopo”, que fica enternecido e sensibilizado quando lhe dizemos que esta conversa vai ser capa da NS.
Reminiscências da infância: às vezes, saltava do terceiro andar para montes de areia. “Era uma coisa estapafúrdia, mas a verdade é que nada nos aconteceu. Hoje, se visse o meu sobrinho a saltar do terceiro andar, ficaria histérico, a achar que o rapazinho precisava de terapia, é por isso que talvez eu precisasse, mas não tive e fiquei assim.”
Era em silêncio que entrava com Chiquinho na casa de desconhecidos: galgava as vielas, os longos corredores das típicas casas piscatórias de Caxinas. Ao pátio, onde a vida acontece. Aventuras: os “lingrinhas” Valter e Chiquinho. “As pessoas ficavam surpresas, não assustávamos ninguém, só queríamos conversar, ver como era a vida delas.” Etnografia das hormonas. Nunca correu mal, nem viram nada de “picante”. Mas gostariam. “Inconscientemente queríamos ver algo que não tivéssemos visto em lado nenhum, que não desse na televisão, mas nunca apanhamos nenhum flagrante suculento”. Apanhavam mulheres a remendar as redes. Um cheiro intenso a peixe. A maresia lá fora, ainda o traz. “Uma vez puseram-nos a rezar e ficamos muito arreliados. Queríamos ir embora, mas, ao mesmo tempo, rezar era uma coisa tão solene e séria que não podíamos ir.” Respeito. Quando saíram, correram. “Tivemos um ataque de riso, nervos e frustração, porque passamos ali uma hora num frete que não estávamos a contar.” Coleccionavam histórias. Às vezes saíam felizes, outras angustiados. O Chiquinho já partiu. Valter continua a contá-las. E pinça outra, daquele tempo: “Ouvimos histórias duras, do mar, eram as mais assustadoras, de filhos perdidos, mortos e, mesmo que fôssemos pequenos, aquilo mexia connosco”. Percebe o respeito à vida; aos outros, a noção de envelhecer. “Às vezes, os miúdos não têm a percepção do quanto pode ser disfórica a vida de um adulto. Mas isso não fez com que deixássemos de fazer as nossas brincadeiras arriscadas.” Amadurecimento precoce? Crescemos em “universos paralelos”. “Num primeiro acho que cresci muito rápido; num segundo fiquei ingénuo porque conservei utopias, e acho que as pessoas hoje já não têm utopias”. Auto-análise para o escritor que escreve sobre cenários quase distópicos, com azimute na esperança. Junta o melhor de António Lobo Antunes e o melhor de Saramago, para ser profundamente ele. “A minha utopia é a mais estapafúrdia: que o mundo ainda vai ser composto de boa gente e isto ainda vai levar aqui umas hecatombes, mas mais cedo ou mais tarde a humanidade ainda vai ascender a uma condição muito benigna, e vai ser exactamente aquilo que se espera que um bicho que pensa e sente seja: progredir até ao equilíbrio das suas energias e ao alcance da benignidade”.
Culto de uma certa ausência
Lá fora há vento alucinado a fustigar ondas. A areia revolve-se e a nortada quase nos leva. É época balnear e aqui dentro fala-se de outras tempestades. “A minha família, muito humilde, não teve uma vida fácil, houve várias quebras”, contextualiza Valter. A mãe perdeu um menino de um ano antes de ele nascer. É hoje o mais novo, protegido, mas houve educação pela pedra. “Até mesmo por ter um irmão que não tive: foi sempre um culto de uma certa ausência”. E uma relação aberta com a morte. “As crianças perspectivam o tempo como uma coisa que não tem fim, o tempo não tem, mas se o meu irmão tinha morrido, eu percebi que também podia morrer, e isso incutiu em mim um sentimento de perda; habituei-me a senti-las”. Como a do pai. “Sim, acredito que alguma coisa deve ser feita e acho que encontrei uma forma para a redenção das minhas fatalidades que foi escrever. É a possibilidade que eu tenho de fazer o tempo parar um pouco, de consolidar a memória, de perder o menos possível, perdendo, como fazem todas as pessoas”. Uma forma de improvisar a eternidade. Fica sempre com a sensação de lutar contra a “ocupação fantasiosa” do vazio. “O que importa é que me ajude e a Literatura ajuda-me”. Tem ajudado. “ [O livro] a máquina de fazer espanhóis parte dessa necessidade de transformar a morte do meu pai em literatura, e o que fiz no lugar vazio dele?: coloquei o livro”. Sabe que é mais uma utopia, um efeito lírico da sua condição: mas faz catarse. Desfazemos equívocos: não são livros terapêuticos de quem se senta no divã. “É a minha natureza que acontece assim, e é um extra, um agradecimento”. Sim, um tsunami pode ser assim sentimental. Ou anarca, sem disciplina, a escrever bruta e impulsivamente. Hiberna, tem “grandes ausências”, com “algum prejuízo para a saúde”. Quando é ermita não come, não abre as janelas. Precisa desse resto de solidão, para aprender sobre o resto de companhia. E, se tiver inteligência, confidencia, ela é intuitva, não gosta que lhe expliquem muitas coisas, que não é pragmático. Isto para o homem que estudou Direito. Pois: irrita-se com as injustiças ao redor, e recentemente gritou com uma mulher nos Correios, porque ela foi indelicada com um senhor que tinha roupa maculada de obras, de quem anda a construir as casas dos outros.
Faz sentido falar de tsunami literário?, arriscamos. “Compreendo o que o Saramago quis dizer: há uma voracidade na minha escrita, uma rapidez, que cria uma aceleração no leitor e fico contente que ele tenha dito isso: mas gostava que as pessoas se ativessem menos à questão formal dos meus livros e os aceitassem como propostas de discussão, porque tenho a ambição que os personagens sejam quase reais, que criem uma relação com o leitor de muita intimidade”. As questões formais já deram dores de cabeça. O tipo das minúsculas: uma leitura redutora do autor? “Deixaram-me careca, eu não era assim tão careca: há muita gente que já escreveu em minúsculas; elas não fazem um livro, por isso tenho certa ansiedade que este novo saia em maiúsculas.”
Confessionário, um pecado
Estamos quase de saída para a ventania, várias músicas de fundo e conversa com tempo. E, em breve, vamos sentir cheiro de maresia. Valter leva-nos ao lugar do beijo roubado. Há vinte anos que lá não ia. A primeira foto, aqui, com fundo de azulejos antigos. Uma casa térrea e esta imagem poderia ser capa de um disco pop-star: Valter de mãos nos bolsos, t-shirt e calça pretas, e um casaco de gola levantada. É vaidoso. “Nunca me tiram fotos em que gosto de me ver”. Há uma mais à frente em que pede que lhe mandemos. Mais outra e outra. Afinal! E neste momento o escritor-cachopo pergunta: “Será que aquelas redes de pescadores ali abandonadas têm pulgas? Será que me arrisco a deitar aqui para uma foto?” É ele quem guia. Sente-se em casa. Só o sol incomoda, ferindo os olhos. E Valter tem qualquer coisa de Apolíneo: a ansiedade pelo belo, a música agarrada na voz, e agora não consegue desviar a atenção do deus do sol. Agarramos o mote: é religioso? “Não, uso uma espiritualidade das coisas naturais: acho que a natureza já transcende o suficiente e não precisamos complicar”. Até cresceu a acreditar; foi à missa. Sai uma longa conversa. Em síntese: “Se deus existir tem de ser um indivíduo muito mal formado, com más intenções, então talvez seja melhor que não exista nada, que a morte seja um sossego absoluto; porque o paraíso vai ser sempre uma utopia, uma estupidez, não se pode prometer o paraíso a uma alminha que depois olhe cá para baixo e veja esta miséria: há uma contradição nestas invenções todas”. E, agora, para algo quase completamente diferente, até porque já sonhou coisas que aconteceram. “Até acredito que as pessoas têm coisas que não se explicam e que parecem do outro mundo, do insondável da natureza, mas não pode haver nenhuma figurinha e nós não somos marionetas de certeza”.
É Balança, na astrologia, mas não acredita nisso. Surpreende, depois: “Acredito naquela coisa da água e da lua, porque nós somos feitos de água e, de facto, em determinadas alturas de lua cheia, não fico lobisomem mas fico insuportável, fico com dores de cabeça, tudo me cansa, durmo pior e, por isso há aí qualquer coisa, há uma menstruação nas águas de todos os seres humanos, e a lua vem marcar esse período.” E os homens também têm períodos se estiverem atentos, prossegue como quem dita um oráculo. “Eu não consigo deixar de estar atento, porque fico transtornado”.
Avalanche criadora
Passou a vida “a pedir licença”, mesmo as coisas que eram direito seu. Não é rancoroso, mas esperneia muito, amua. E olha de baixo o alto de poderes mesquinhos que não tolera. “Há pessoas que têm essa veleidade: de usar um poder ridículo que não presta para nada, e agride-me que o usem para humilhar outras, para projectarem as suas frustrações”. Fala o escritor que diz continuar a ser tímido e que sente coisas diferentes, criando. “A escrever transfiro-me muito, desapareço: o meu lugar, o meu nome, e ascendem todas aquelas pessoas; cantar é oposto, parece que tirei a roupa e que estou a descascar a pele, tenho uma vergonha enorme, medo, fico sempre nervosíssimo.” Cantou numa festa privada para desconhecidos, em Paraty, deu quatro concertos ao todo, e vai cantar no Festival Paredes de Coura com o grupo “Governo”. Vai ser um striptease total, então. “Ainda por cima é a malta do rock e nós quase fado; posso ser linchado, mas dá-me gozo ser mais do que posso ser, conseguir mais do que estaria à espera e desafiar-me no fundo é isso, não ter medo de errar”. Às vezes desafina: “Há quem me diga isso, mas se for só uma música está óptimo. A Maria João disse uma vez que isso também lhe acontecia, por isso deixem-me desafinar mais dez anos e depois eu começo a cantar direito”. Mas pensa nisso: gostaria de fazer mais projectos musicais? Evoca mais tempo, mais segurança na voz e uma identidade para ela. “Eu adoro música e gostava de achar que não estou a fazer uma figura triste”. Prefere arriscar a não fazer nada. Foi convidado para esse projecto com dois músicos que “adora” com carreira de 25 anos: “era inconcebível dizer não”, porque “se eles acreditam” que pode fazer um bom trabalho, ele não nasceu “para dizer que não a uma coisa dessas”.
Vamos olhar o futuro? Vai passar duas semanas na Islândia, de férias, e espécie de trabalho de campo. O próximo livro vai-se passar lá: quer “sentir a cidade, as pessoas”. Talvez conheça a cantora Bjork. E um desejo: gostaria de fazer uma participação num filme, nem que seja o indivíduo que entrega as chaves ao personagem. “Eu não consigo ficar só a assistir às coisas, quero fazer parte, e se estiver numa condição credível, então eu partilho, mas é muito honesto.” Explica: “As pessoas dizem-me: então estás a pensar fazer carreira na música, ganhar dinheiro, vender discos, não é nada disso: é apenas uma experiência de partilha com os meus amigos e isso basta-me, não preciso ficar famoso, para as coisas me darem prazer. Não muda nada para quem gosta de mim e é isso que importa”.
Novo livro, o mais “cândido”, é um “Filho de mil homens”
Valter Hugo Mãe está sempre “à procura” de formas de reinventar a prosa. Com lançamento previsto para Setembro, o novo romance, “O Filho de Mil Homens” (Objectiva/Alfaguara), é, segundo o escritor, “um livro diferente dos outros” que já publicou. Para começar: um adeus às minúsculas. “Acredito que as pessoas vão reconhecer o meu estilo, mesmo com as maiúsculas e com dois pontos; antes só usava ponto e vírgula”. Estética à parte, até porque, diz, não é o mais importante, aqui é campo de experimentação, este é o seu livro “mais cândido”. Um homem, Crisóstemo, quase 40 anos, e uma profunda tristeza por não ter sido pai. Homónimo: autor que faz a mesma idade em Setembro. “É um livro no qual todas as personagens ambicionam uma sublimação, por isso elas passam todas rente à felicidade: é um exercício completamente diferente em termos mentais, a maneira como elas evoluem, como elas se comportam: todas as suas aspirações são cândidas – tudo pende para a pureza”. Agradou-lhe, particularmente, ter escrito um livro, assim, com candura, até ao limite. “Esgotou-me muito porque preciso escrever um livro negro, terrível, para voltar a repor os meus níveis de colesterol” - breve ironia - “mas agradou-me muito conseguir que o 'Filho de Mil Homens' seja um livro muito belo no sentido dessa ansiedade pela beleza pura”.
A salvação está no Belo. “Eu terminei uma espécie de tetralogia, os meus primeiros quatro romances fecham um ciclo e, neste momento, com este livro começo uma triologia em que falo da necessidade de ter filhos, esta propensão para a descendência e este amor que eventualmente temos reservado especificamente para as pessoas nossas filhas, e que é um amor que não se esgota com mais ninguém, que não se usa com mais ninguém e que não se compensa com rigorosamente nada”. Um desperdício, um amor encostado. “Por isso, há essa coincidência comigo: assumo essa tristeza por ainda não ter tido um filho. Não me sinto incapaz, nem desajeitado para arranjar uma mãe, por isso não estou em concurso, como parecia na FLIP, em Paraty”, graceja.
Breve Biografia de Valter Hugo Mãe
Estudou direito; pós-graduação em Literatura Portuguesa Moderna e Contemporânea, fundou a editora Quasi com Jorge Reis-Sá, extinta em 2009. Tem 14 livros de poesia divulgados, entre os quais “folclore íntimo” (edições Cosmorama, 2008) e “contabilidade” (Objectiva/Alfaguara,2010). Quatro romances publicados: estreia com “nosso reino” (Temas e Debates, 2004), reeditado este ano pela Objectiva. Passa, ainda, pela literatura infantil como escritor e ilustrador (“a história do homem calado”, quidnovi, 2009), com a paixão da música a palpitar: “Propaganda Sentimental”, grupo Governo (letrista-cantor), e outros projectos como letrista. Distinções: 1999, Prémio de Poesia Almeida Garrett - Egon Schielle Auto-Retrato de Dupla Encarnação; 2007, Prémio José Saramago: O Remorso de Baltazar Sarapião.
DNA nas artes e os livros que folheia
Os livros são os grandes responsáveis pelo caminho pessoal de Valter Hugo Mãe. Alguns, dirá: porque é esquisito. Têm de mexer com ele. Está sempre à procura que o fascinem. Lê muito e gosta que um livro lhe “ofereça expressões a que nunca chegaria se não fosse o percurso daquela específica criação”. Rendeu-se ao Nobel islandês, Haldór Laxness, a Edney Silvestre Se eu fechar os olhos agora e a O pintor debaixo do lava-loiças do Afonso Cruz. Fora das estantes estão, agora, The Pets, de Bragi Ólafsson, e O grande deflorador do Dalton Trevisan. Na lista: Zero do Ignácio de Loyola Brandão.
E comove-se com Kafka, Herberto Helder, Fernando Pessoa, Bach, Billie Holiday, A Naifa, Francis Bacon, Goya, Damien Hirst, Van Eyck; muitos outros. Marcas artísticas para o escritor que levou a poesia a sério, pois “o enriquecimento da linguagem é mais natural” se viermos dessa escola, diz, por onde começou, para prosear. Chegou a fazer uma revista à mão que “policopiava” para vender e ninguém comprava.
E há mais gente que forma “o dna” valteriano: “no cinema, muito Hitchcock, Bergman, Fellini, Pasolini, De Sicca, Visconti, Tarkovsky, Artavazd Pelechian e o bronco do Lars Von Trier, que adoro”.
Na adolescência leu Enid Blyton, mas não a série “Os Cinco”. E adorava ler uma série de um outro autor que contava “as aventuras de um cachopo apalermado” chamado McGurk.
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