Há dias vi-o a entrar no autocarro, no Carvalhido. Mal ouvi o taque bruto, cadenciado ora um, ora outro, da madeira dura, calejada de calçada, paralelo e cimento, anos (quantos quilómetros deverão ter estes paus, disformes e moldados à vida de um ser) aflorou-se-me a reminiscência de infância, que me percorreu até à adolescência.
Era na sede do Padroense, no campo de futebol, nas ruas do Padrão da Légua, na estrada que rodeava os extintos caulinos, da época em que se ia a pé para a escola da senhora da hora, em longos e pueris 20 minutos que pareciam um recreio diário. Se há memória de um ruído local era esse, omnipresente, seguido de uma voraz voz, grave e metálica. Essa, a de um homem berrante. Talvez a forma máscula de se afirmar, que era ele que ali passava. Esse homem berrante, que parecia querer calejar os caminhos, que parecia querer enterrar os paus em terra dura, urbanizada. Chame-se-lhe um caminhar de quem se quer arraigar, na expectativa que seja o caminho a percorrer que por ele passe, e não um contínuo esforço compassado.
Quando o víamos, ao longe, sussurrávamos baixinho: -Olha, lá vem o Zé dos Paus. Posso atestar que havia miúdos que faziam pouco dessa debilitada condição, só por usar esses paus como extensão de saúde que não tem na fisiologia dos movimentos. Mas nunca impeditivo de mobilidade. Quem lhe acompanhou parte de percurso, sabe que muitas vezes percorreu estrada do Carvalhido ao Padrão da Légua, a pé.
Deve ter sido o povo, quem o assim apelidou. Colou. Ninguém o conhece por outro nome, embora o bilhete de identidade possa, surpreendemente, constatar outra onomástica. Não sabemos. Nem lhe sabemos família, muito embora, possa assegurar que, em criança, o vi acompanhado de uma mulher, a quem ele berrava, cambaleante, exercendo, pois, soberania e autoridade.
A história de vida deste homem, na época menos franzino e envelhecido, está escrita, na boca de todos nós que o conhecemos de vista, como personagem vívida do rendilhado humano do Padrão da Légua, como o Zé dos Paus. As pernas tortas, cujos pés se arrastavam de lado, coadjuvados pelos espetos de madeira polida.
A minha tia, sentada atrás de mim no autocarro, tentava lembrar-se do nome dele. Ainda tivemos tempo de conversar um pouco mais alto, antes que ele entrasse, pois o transporte público parado, à espera que o homem do tamanho de uma criança de 11 anos, entrasse, ainda se demorou. Fui eu quem se lembrou, sussurrante: é o Zé dos Paus, como se de uma epifania se tratasse.
Barba grisalha, careca, corpo cansado, a tentar subir para se sentar na cadeira número dois, na diagonal ao motorista. A força dos braços não lhe falharam, mas ainda foi a custo. Todo um tratado de vida, de esforço e persistência. Um homem mais silencioso, porém, pois a rouquidão, que lhe percebemos, sussurrava que a voz, agora, menos autoritária, lhe falhava. Quantos anos terão passado desde a última vez que o vi? Seguramente uns 20 anos. E já na época ele parecia mais velho.
Mas aquilo em que pensei, não foi do tempo passado, foi o do que, qualquer que seja a condição em que a vida nos coloca, todos queremos o mesmo: ser amados. E isso sobre ele não sabemos: se este homem é amado? Se o é, se o foi, se o será é porque, afinal, pode ter tido sorte ao jogo, e, em vez de paus, esses trevos negros, há-de ter vivido em copas e não obstante o resto, há-de ter tido caminho menos pedregoso, que nós, os que andamos com os pés direitos.
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