quinta-feira, fevereiro 04, 2010

Tutti-Frutti

Ele examina, minuciosamente, a garrafa de azeite, como se tivesse descoberto um líquido exótico, que não sabe para o que serve mas acha bonito. Hesita, abre-a, timidamente, inclina-a de forma ligeira e delicada, e fica a observar aquele fio viscoso óleo de oliveira, com espanto infantil, a cair na comida. 
Antes, comera um pastel de nata. Fotografou-o com a máquina nas mãos acanhadas, para que poucos percebessem o que estava a acontecer. Quando a comida chegou, depois, arregalou os olhos e deu um outro clique demorado e contemplativo. Insensível, já, que estou, reactivamente, às feições orientais, por durante quatro anos viver numa cidade que é a mais populada por japoneses, filhos de japoneses, netos, bisnetos, depois do Japão, não percebi, de imediato, (tudo me parecia demasiado normal, como ouvir um japonês a falar português do Brasil) que este rapaz de chapéu da Nike, sapatilhas Asics, blusão de penas, guia Lonely Planet, borbulhas da cara como qualquer um, sem estampas de nacionalidade ou cultura, está, apenas, de passagem por Lisboa. Como eu, com a diferença de que não tiro fotografias aos pratos. 
Claro, também indiferente e viciada nos costumes que me criaram na portugalidade enraizada. Só que não deixo de me sentir, também, solidária com o rapaz, talvez por uma vontade secreta de que ele seja solidário comigo, na minha condição de estrangeira em terra própria (e de há quatro anos para cá não tenho sido outra coisa senão estrangeira nas pequenas coisas: também em casa de meus pais, onde já a dona Elvira conhece mais manhas da casa do que eu: as manhas da fechadura da garagem, onde se guardam as cebolas). Por isso, esse meu acto solidário compadece-se com a minha estranheza de que as coisas de cá, da capital, me são alheias. Sobretudo no que diz respeito, agora percebo-o, aos comes e bebes. 
Ontem pedi, no Café Gelo, em frente à Praça do Rossio, um Compal de Tutti-Frutti. A senhora trouxe-me um de cenoura-laranja-manga, já aberto. Educadamente disse-lhe que ela se tinha enganado, mas uma vez aberto, não iria ser por isso que se iria estragar. Beberia-o.
Muito segura ela negou:
- "Não, não me enganei. Não temos de tutti-frutti e esse é o mais tutti frutti que tenho. Tem três frutas!"
 Sorri, à espera de uma cena de “apanhados”, mas ela continuou com um ar sério, inabalável, seguro, como se estivesse a cumprir alguma ordem divina. Se pudesse, teria fotografado aquele momento. Mas o japonês já tinha saído. E não havia ninguém solidário com uma estrangeira, em terra própria, nas coisas alheias.

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