sábado, fevereiro 20, 2010

(.Isabella.)


Ela poderia ter sido mais discreta. O top colorido, o casaco castanho, comprido, cintado, o lenço rosa-forte, os olhos delineados, os lábios carnudos, suculentos, o cabelo solto, disforme e desfiado, escuro. Aquele ar empertigado dela, Isabella, de ego polido, como peça de cristal. Até porque ela sabe que, depois de dias assim, vêm outros arrastados de alma pequena e refastelados na modorra lenta do esquecimento. Ela gostava de sorvê-los, sofregamente, como boémia hormonal, sem amanhãs e dias depois, porque a vida, diz, gasta-se no uso e desfruto de lânguidas sensações. Se as sentimos, há que agarrá-las quentes e queimarmo-nos de vez, nem que seja de uma só. Empolada. Voluptuosa nos sentidos.

E, agora, nas formas. Ganhara uns quilinhos a mais – para compensar os a menos que depois viriam, e que antes também lhe deixavam folgas nos soutiens e nas calças de ganga. L. disse-lhe que lhe fazia bem assim, encher as formas, para justificar os moldes ocos que a natureza lhe deu; e para que ele enchesse as mãos. Que gostava de a apertar e sentir os declives como se fossem terra fofa e farta, em linhas inesperadas de rios que se entranham nas encostas. E Isabella era terra húmida, macia, de cheiro morno, no convite lascivo ao ócio dos sentidos. t

Era da barriga que ele mais gostava. De sentir a curva depois do umbigo, “perfeita” de corpo de mulher como deve de ser. Tinha de haver alguma coisa para tactear, em deleite de texturas e degustações apalpáveis. "Barriga-tanquinho" era coisa de mulher doente, escanzelada, desprazida, dissaborosa. Nós dizíamos-lhes que ela estava sempre bem. Engordar nunca lhe fazia mal. Era deliciosa, sempre. E gostávamos de a chatear por causa das escapadelas e noites varadas em casa dele. Era ciúme o que sentíamos, na verdade. Muito ciúme. Não dela; da forma de ela justificar a vida, afeitos e presos  que estamos à nossa cláusula quotidiana timorata de viver. Somos todos uns cobardes, embora tudo aqui nos parecesse uma lascívia de espírito fraco. A princípio olhávamo-la indiferentes, como se não percebêssemos o que se estava a passar. Depois ficamos com ciúmes, muitos. Depois com raiva porque Isabella não contava absolutamente nada e comportava-se como se nada se passasse e fosse, na realidade, a coisa mais natural do mundo. E era. Mas incomodávamo-nos que ela não contasse. Tudo teria ficado mais fácil. Aquilo, para os dois, tornara-se um vício. E, a nós, moía-nos a falta de cumplicidade. Ela tinha de nos ter contado.

Eles não estavam “bem-bem” juntos. Nós sabíamos. Sabíamos que aquilo não ia durar, apesar de percebermos que se entendiam. Nenhum dos dois teria vocação para abdicar daquilo que os unira. A liberdade de estar. O desafogo do respirar dos dias sem cobranças de afectos e desafectos. Laços líquidos, sempre. Desapertadinhos, feitos de seda e cetim, para escorregar melhor. Quando nos encontrávamos todos, era como houvesse um vazio. Eles não disfarçavam o querer. Só não mostravam o nó, levezinho. E a moinha de raiva tomava conta de nós. Isabella, caramba, que raiva!, pensávamos.

Nenhum dos dois forçava o lado do nó. Atavam-se com leves enrolares que não chegavam a ser nós. Deviam-se fidelidade enquanto durasse. Bom, assim-assim. Nós sabíamos que aquilo era uma espécie de probidade em linguagem comum, a dois, porque havia o R., ainda, onde a cabeça dela ainda estava. Talvez ele ainda aparecesse. Na verdade não se deviam nada, um ao outro. Era bom estarem, ponto, e gostarem-se, ponto. Nunca chegou a haver palavras. Houve vários afectos, mais sinceros que muitos casamentos, mas palavras nunca; e Isabella chegou a desejar ouvi-las. Por enquanto estava só com ela.

Ela não estava só com ele. Isabella tinha queda para os problemas amorosos. Ainda tem. Ela é muito irisada nas relações. Talvez porque ainda tem o R. na cabeça. E talvez ele ainda apareça. Não chegámos nunca a dizer-lhe isso, embora tivéssemos desejado, várias vezes. Fora uma amizade matizada (e enrolada), também, aquela que ela tivera, com S., o actor; e talvez com T., o designer, anos antes. Mantinha assim, um cardápio recorrente de paletas para pintar a vida e o sexo. Sempre foi discreta, reincidente nas cores, claro. Com S., o actor, duas noites foram o suficiente para perceberem que aquilo poderia ficar sério, já que havia ali alguma coisa de alquimia dos deuses que fazia com que tudo funcionasse, sem esforço. E no sexo ela tinha sempre a alquimia. Escolhia-os a dedo cerebral dos fluxos químicos. Havia uma história por trás. E plaf: não se enganava! Com S., não deu certo.  Nunca daria. Nenhum dos dois queria o peso de uma relação e a seriedade da contabilidade amorosa. Estavam apenas de passagem. Faziam um belo par. Não era o momento. Depois, aquelas duas vezes foram arroubos químicos para os quais não estavam preparados, imbuídos pelo álcool.

Naquela noite, porém, ela poderia, ter sido um pouco mais reservada. Estava inflamada de desejo e os dois ali, na mesma mesa: S., o actor, e L., o bancário. Provou um vinho, depois outro, veio outro, a roda animada dos cavaqueios de viagens, aventuras, quem-dorme-com-quem-e–deixou-de-dormir, as piadas sem graça, as piadas com graça, o gracejar, as pequenas coisas, as grandes, o papel higiénico da casa de banho, os projectos de vida. 

Estavam todos à mesa: J., o livreiro gay, K., o arquitecto, T., a lojista, H., o cozinheiro, A., a manicure e J.1, o controller financeiro de uma grande empresa. Depois estavam S., o actor e L., o bancário. E Isabella, a produtora de moda. Percebemos,claro, o jogo em que ela se tinha metido, sem se querer meter, embora se o soubesse de antemão, tê-lo-ia desejado. A nossa Isabella é pródiga em encontros e desencontros e constrangimentos em lugares comuns. J., sacou alguma coisa. A Isabella estava saindo com S., o actor? Não. Mas algo já se havia passado ali. Há alguns anos sim. Dois talvez. Não passara de duas noites. Os poros da cumplicidade começam a suar quando se reconhecem. J. sabe reconhecer o cheiro. Chegou a comentar com T., que lhe negou primeiro, e confessou depois. O que J. não identificou foi o cheiro de  L. e Isabella. Talvez porque nessa noite ela estava mais S.(iderada) com o S.(épia) da vida. Não queria dar a entender a L.. Ele nem chegou a perceber (talvez hoje ele saiba, porque nós deixamos escapar, de propósito, de uma das vezes em que fizémos tricô sobre a Isabella).

Naquela noite, ele não desconfiou sequer. Era a primeira vez que via S. Hoje são grandes amigos (as voltas que esta manha da vida dá). Chegaram a ir lá para fora conversar. Entenderam-se, gracejaram, juntaram o botão à casa certa, e abotoados nas pequenas coisas, trocaram números de telefone para porem a conversa em dia, um dia! 

S. queria a Isabella. L., também. Entenderam-se talvez porque quisessem a mesma mulher e não sabiam. Nada disso, penso hoje. As mulheres não têm nada a ver com o entendimento dos homens. Entenderam-se porque há uma qualquer equação que bateu certo naquele contexto.

L. mandou depois, naquela noite, uma mensagem que Isabella só viu quando chegou a casa,  depois de ter beijado S., que a agarrou no carro, sôfrego como sempre (ela detesta beijos sôfregos), sem lhe dar segundos para pensar, porque a cabeça dela tinha, ainda, R., L., e também F., que lhe andava no encalço há meses - esse ela sabia que não poderia nunca mais ver: duas vezes, por menos de meia hora, foram o suficiente para entender que era a química arrebatada, sem sequer se tocarem – além do mais era um homem muito mais velho, 16 anos: o vermelho piscou várias vezes em “bips” intermitentes. É actor, também.

A mensagem de L dizia: “vamos fazer dos nossos corpos a manta perfeita?” 

Como quem diz: “Afinal, dormes lá em casa ou não?”. Se ela tivesse visto, talvez tivesse voltado para casa sozinha, sem boleia. Não chegou a pensar que S. a agarraria assim, anos depois. Nós sabemos que ela gosta do jogo. De se sentir desejada, voluptuosamente cobiçada. E para sermos sinceros, sabemos que ela tem, apesar de tudo, um problema de auto-estima: aqueles quilinhos a mais. Gostaríamos que ela tivesse sido mais discreta em tudo, porque nós percebemos, e ficámos moídas porque ela não nos contara nada. Parece que o segredo, que não o era, inchava-nos de desconforto, como se nos roesse um pouco a amizade. Naquela noite, embora ela não nos tivesse confiado nada, sabemos que Isabella voltou a casa arrasada. Subiu as escadas. Sentiu o bafo vazio do quarto. Da sala e da cozinha. Fumou um cigarro à varanda. Olhou a cidade do alto e não conseguiu chorar. Não podia. Tinha de ser discreta para si, para uma Isabella anti-comiserativa das fraquezas da outra, e para o vazio da casa sem ninguém. Nunca aí desejamos ser Isabella, por isso perdoámos-lhe o silêncio. O de ser Isabella.

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