segunda-feira, fevereiro 01, 2010

Hilda



Naquela casa, perto de Ipanema, talvez ela tenha tudo o que precisa para ser feliz. Tem a cozinha para os pratos vegetarianos (que não passam de soja com cebola e beringela ou cenoura e molho de shoyo); a coca-cola zero no frigorífico; a sala com o computador; o quarto com o colchão; e a mesa pequena no corredor, com as cartas da sorte, onde ela procura, todos os dias, uma resposta àquela pergunta só dela, como se fosse um oráculo. Talvez ali, naquele apartamento, tão perto da praia, ela tenha tudo para ser feliz, embora nunca o esteja, ou arranje constantes subterfúgios, para se sentir, cronicamente, descontente do todo que diz não ter, mas poderia, para sê-lo. E talvez pudesse, tanto, se se esforçasse mais um pouco. “Só mais um pouco Hilda”, dizíamos-lhe. E ele desatava a enrolar-se no sofá, a esmifrar cigarros, uns atrás dos outros. Depois, saía, batia com a porta e dizia que não a compreendíamos, que ninguém a compreendia.

Sempre conheci a Hilda assim. E talvez, bem no fundo, entenda por que é que ela, tão delicada e absurdamente depressiva, nunca se contente com nada, a não ser a amargura de arranjar problemas, lá dentro dela, em grandes nós (as crises de Hilda não eram bonitas de se ver) e apaixonar-se pelos "homens errados", sobretudo os casados. Estava lá em casa quando aquele actor famoso lhe ligou, às quatro da manhã, para que ela aparecesse em casa dele (correcção: na cama dele). Ele, casadíssimo, e que até há bem pouco tempo apareceu nas páginas cor-de-rosa como uma das estrelas de TV com o casamento mediático mais duradouro. Hilda ria-se muito, gracejava, dizendo-lhe que não, intercalando, com um “você-tá-louco-cara-me-ligando-a-uma-hora-dessa”. Não iria, claro que não. E nós ríamo-nos muito, no fundo com inveja da Hilda, talvez. Ela sabe que não precisa disso: de aquecer leitos, onde outras se deitam; de consolar prazeres furtivos; de ser fantasia juvenil. Não é essa, realmente, a história dela.

Meter-se com o editor do livro do pai dela, casado, já foi lição suficiente, para que mantivesse a braguilha apertada, num voto de castidade, com homens casados. A mulher dele perseguiu-a, durante dias, e fez um escândalo à porta do apartamento em Copacabana, insultando-a. Não era bom para a reputação dela. Com vergonha, mudou-se para Ipanema e jurou "nunca mais". Não sei, verdadeiramente, se Hilda não seria mais feliz com uma mulher. Houve uma altura em que pensei muito nisso. Mas a ela não lhe interessava esse assunto, a não ser como tema dos livros que escrevia. Uma mulher assim, como Hilda, com um karma sexual tão forte, e um interior já tão corroído e desequilibrado, não é fácil de perceber. "Não haverá homem que a entenda", lembro-me de ter pensado. Apesar de não haver homem que lhe resista. Só que ela, nunca construiu verdadeiramente nada com ninguém. Talvez esse actor, até ficasse com ela, como brinquedo, mais tempo que o comum. Um ano. Poderia ser que chegasse a tanto. Ou que ele pudesse ser o brinquedo de Hilda, por uns tempos. Ela sabe dar-lhes a volta, quando quer. Só que ela não precisa disso. De nada disso. Ela só precisa dela e não consegue. E de nós. Ela precisa muito de nós. Mas nós, às vezes, não temos paciência para tanta reincidência no desequilíbrio. Tanto peso!

Depois sei que Hilda não seria Hilda se não tivesse esse útero doente, onde pare os filhos das suas geniais criações. E como escreve Hilda! Chega a dar inveja de como ela escreve com dor, acidez, azia: a escatologia da vida como coisa bela. Acho que todos os grandes artistas precisam de um útero constante e de dores de parto. E eu sempre conheci a Hilda assim. Acho que no fundo invejo-a, devagarinho, sem chegar a ser feio porque gosto muito dela. Vê-la criar, chega a doer, na verdade. Dói porque ela destrói-se, lentamente. Enche-se de cerveja, fica ansiosa, fuma como uma desalmada, enche-se de coca zero (de gastrites) e de anti-depressivos. Não se deita antes das quatro da manhã, com sorte. Levanta-se às 10h para ir correr, à conta de uma obsessão anoréctica que herdou da adolescência. Isso quando não está a contar as calorias da comida. "É obssessivo e doentio, Hilda, chega", dizemos-lhe. Ela faz de conta que não é com ela e continua. E nós fazemos de conta que não a vemos a fazer aquilo. Pedimos a nossa comida e a conversa continua, porque alguém a desviou.

E Hilda é tão linda. Aquele rosto terno e de traços eslavos que lhe misturam um esboço de Lispector. Os olhos apertados como se estivesse sempre a sorrir. Aquelas palavras geniais, porém tão doentes, e tão profundamente crónicas da dor que vai ali dentro dela, da nossa Hilda, para criar. E como ela cria naquele cubículo em Ipanema. Cria tanto, que chega a doer-lhe. Só que ela é tão feliz quando cria. Acho que são os únicos momentos, em que ela é verdadeiramente feliz: a esmifrar cigarros em fila indiana, a beber cerveja que nem louca, com coca zero nas vírgulas da criação e as insónias para parir um texto - uma ideia, um roteiro, um diálogo - à mão, naquele caderno cor-de-rosa, com tantas perguntas, que não chegam a ser dúvidas, mas formas de ela lhe responder, a ela própria, página a página, que aquela Hilda, sim, é feliz, por instantes de lucidez, no cubículo de Ipanema.

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