terça-feira, janeiro 19, 2010

Pashtina de Bielman F.


Quando ele chegou a Pashtina, essa cidade imaginária que todos temos dentro de nós, como dores irreais que nos arrancam do sossego da nossa cama quieta e quente, viu pessoas a dormirem em autocarros queimados. Viu casas em ruínas, poeira que se entranhava nos pulmões e homens de cabelos compridos, envelhecidos, gastos pelo vento e pelo suor do descontentamento.

Sentou-se naquele autocarro, justamente naquele onde viu o nome dela gravado num dos bancos, o das janelas estilhaçadas, talvez pela pilhagem dos homens que ali dormiam, sem mulheres para fornicar, ou lhes aquecer o corpo frio, depois, de tanto suar, e lhes lamber as feridas envelhecidas, sobretudo as de dentro, que as de fora já estavam em putrefacção, numa solidariedade colectiva que torna os homens de Pashtina os mais sofridos e merecedores da angústia. Ele viu o nome dela. Há muito que não via o nome dela. Chegou a andar noites, depois do expediente, para procurar, de novo, o nome dela escrito em letras garrafais naquelas paredes. Deu faltas injustificadas na repartição das finanças, onde trabalha, diligentemente, mas discreto, há 30 anos, sem que o chefe saiba, afinal quem é Bielman F., só para reencontrar o nome dela onde quer que fosse naquela cidade.

Nunca mais o viu e, depois disso, tratou de arranjar outra obsessão, ou outra namorada imaginária, como lhe chegaram a dizer na repartição das finanças. E, lá estava: naquele dia vira o nome dela. Em Pashtina. Anos depois.

Bielman F. percorre, recorrentemente, lugares estranhos. Alguns imaginários, sofregamente, que a memória lhe traz de tempos que nunca sabe se conheceu. Ele também não sabe, sequer, por que o autocarro que apanha, ao fim do dia, depois do expediente, o leva aos subúrbios do que acha ser – porque Bielman F. não é homem de saber estas coisas – a alma humana, em putrefacção. Ele vê muitos lugares assim. Chega até a dormir por lá, porque não consegue achar o caminho que o leva a casa. Mas depois de adormecer (não quando quer, mas sem dar por ela), acorda sempre no desvão empoeirado daquele beco sem saída que o salário da repartição lhe permite pagar.

Quando a eles vai parar, aos lugares estranhos (tantos, que poderia enlouquecer!)Bielman F, contou-me, acha que fica numa espécie de capa invisível e que ninguém o vê, porque nunca meteram conversa com ele. Não que ele seja um exemplo de comunicação, sempre de olhos metidos no chão, a ruminar por que a vida lhe traz Invernos tão rigorosos, como a infância vivida a pão, papas e vinho avinagrado, para enganar a bolor entranhado. E, depois, aquele ar insalubre, de cabelo lambido de óleo hormonal acaba por ter uma espécie de efeito repelente. Há outra coisa, porém, que o leva a pensar que isso não é suficiente. Por isso, quando chegou a Pashtina, que talvez exista, de verdade, no nome de algum letreiro de autocarro; possa até ser terminal de alguma coisa, nome de alguma cidade de interior onde vivem homens mais felizes, sem putrefacção, ou bolores que tornam a vida um fungo entranhado do qual ninguém se livra nunca; ele fingiu que dormia.

Em vez de explorar essa terra de homens carcomidos, Bielman F., cansado dos lugares a que vai sem pedir, resolveu ser um farsante na arte do sono. Encolheu-se muito, quase a abraçar-se. Encostou a cabeça ao ombro, entortou-se para se acomodar no banco disforme e, contou-me, simulou uma respiração profunda, quase a roncar. E ele, sei-o, não ressona. Não demorou mais de um minuto este número de teatro barato, quando ouviu ruídos de bichos, achou, que não conhecia, ou talvez fossem os homens que agoniavam das feridas em putrefacção, sem mulheres para as lamber, limpar e curar.

Incomodou-se com aqueles barulhos estridentes, como se a agonia fosse um assobio canino intermitente que traz os poros à condição de galinha e lhe entra com um vento gelado pelo corpo. Pela primeira vez, Bielman F. incomodou-se verdadeiramente por tamanha condição humana (ou talvez a sua), numa terra onde, parecia, o sol nunca entrava para secar as lágrimas que eles nunca antes tinham feito jorrar, mas gostariam, por não saberem que condição é essa de aliviar o sufoco com líquidos salgados que podem sair dos olhos. Ele não aguentou. Irritou-se, até, e apeteceu-lhe berrar um “calem-se”, para ficar mais aliviado e poder, quem sabe, continuar a farsa da sonolência, do ressonar, e da indelével indiferença premeditada. Pôs as mãos nos bolsos, tirou um cigarro e usou-o como "conta-tempo" para decidir o que deveria fazer; e como poderia sair dali, de Pashtina, que estava a tornar-se uma valsa lenta de agonias. E logo ele que não era homem para essas coisas.

Esses seres de cabelos compridos, unhas enegrecidas, rostos farruscos, rugas profundas em caras que aparentavam acabar de conhecer a puberdade e que pareciam desenhadas com cinzeis empurrados por mãos pesadas, não se moveram de si.

Aquele som, afiança Bielman F., só ele ouviu. Não olharam, não perceberem o fumo do cigarro, fingiram, talvez, que Bielman F. não existia realmente. Foi por isso que ele, sorvendo o cigarro lentamente, desconcertado e sem saber como sairia dali, demorou ainda outro cigarro, pedindo ao tempo que se demorasse. Depois levantou-se daquela cadeira de estofo rasgado, com o nome dela, pisou os escombros do autocarro queimado e caminhou sozinho pelas ruas, cheias de homens que aqueciam as mãos em latões de fogueiras infernais.

Viu lixo empilhado, electrodomésticos estragados, oxidados e despedaçados, sofás rasgados, cadeiras amputadas, quinquilharias e, talvez, tivesse visto monstros. Ele não soube contar-me quem ou o que eram aqueles homens maiores que estavam encostados aos prédios em chamas. Ele caminhou muito. Correu, quis gritar e não conseguiu. Quis abraçar-se e teve medo. Tentou falar com os homens mas eles não ouviam e sequer falavam entre si. Bielman F. teve medo, muito medo. Como nunca tivera alguma vez na vida. Ele nunca foi de ter medo. E não sabe dizer-me onde fica Pashtina e por que estava lá o nome dela, depois de anos desaparecido das paredes dos becos sem saída por onde anda.

E, talvez por isso, ele não sabe ao certo, Bielman F. chorou muito em Pashtina, soluçou e pensou que não tinha ninguém para lhe lamber as lágrimas, limpá-las e curá-las. Não chegou a fechar os olhos, mas não sabe dizer-me como chegou, no dia seguinte- talvez tenha acordado lá, já, ou despertado de um sonho profundo- até ao beco sem saída que tem por casa, aos lençóis frios que aquece com o corpo franzino e pontiagudo que o pão, as papas e o vinho avinagrado lhe deram como herança. Ele só sabe que chorou muito e teve medo. E que não quer nunca mais voltar a Pashtina. Jurou nunca mais apanhar aquele autocarro.

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