- Mesmo sabendo, você faria?
- Não achei que tivesse que te contar… O que nos corre no corpo e se traduz em beijos e mãos que vão escorregadias não se explica nunca. Se vive como se o momento fosse o último, com magnetismo e desnorte.
Acendeu o cigarro. O ar saiu seco. O rosto agoniou com o fumo e saiu a medo da boca, pausado. Os olhos umedeceram. A fumaça voou pelo quarto. As palavras foram atrás. Silêncio. O ar ficou denso. O peito ficou apertado e engoliu argumentos antes mesmo que eles soubessem que o eram. Ela no chão, envolta em lençóis de prazer, angustiada. Ele do alto, olhando as cortinas de veludo, em convulsão líquida interna para não ceder à vontade de a agarrar e apertar contra o peito. Mas homem vivido não se arrebata por vergonha dos cabelos brancos. E das rugas que servem de anticoncepcional ao parto de afectos.
- Não vamos falar por quê aconteceu. Melhor o silêncio e quebrar o tempo para que a memória guarde tudo como um sonho. Não tem mais futuro.
- Nunca falamos dele, nem do passado. Você disse que era o momento. Que tudo se reduzia a um gozo. Como a amor. E já ninguém morre de amor. Eu concordei.E já ninguém conta histórias assim. De longas noites de palavras e partilha. Com amanheceres no alto. E sem que a sofreguidão e a ansiedade do toque no corpo se intrometessem. Já ninguém se arrebata; e se deixa arrastar. Ou luta por ele. Falamos sempre de presente. Da textura da carpete no chão. De seu cheiro em minha pele. De nossa linguagem de sentidos sem traduções. Da leveza e do bom humor que nos agarra e cola os olhos ao pensamento, traduzindo sem legendas ou retóricas.
- É tarde!
- É sempre tarde, antes de ser o cedo que gostaríamos. Não há tempo ideal que nos registre a escala de sentimentos. A paixão é um gozo só. Ou vários. E que quer dormir depois para se encantar ao amanhecer. O amor é um gozo lento. Ou talvez nunca chegue a sê-lo.
-Você lembra daquele beijo? De seus lábios ainda guardando o vinho daquele jantar nas reentrâncias da boca como se fossem impressões digitais que marcavam os meus? Deixa, não responda. As memórias são para soltar. Nada mais importa, Jeane!.
Seis cigarros depois e as bocas adormecidas ferem, de novo. Sete cigarros por cada pecado. E aqueles que nunca sabemos se existem. Ainda partilharam um. O batom dela no filtro. O cheiro do corpo seduz a cinestesia à perdição, em adultério com os cheiros assépticos que as discussões devem ter. A deles não chegava a sê-lo, porque tudo acabara antes mesmo de começar.
Ela se levantou. A porta rangeu. Se ouviu os lençóis a deixaram o corpo: som de roça-na-pele: “flap”! Se vestiu. Não se tocaram. Não falaram. Não se olharam.
Ele deu o último gole no gin. Deixou cair a cinza na carpete que ainda ardia dela. O celular tocou.
- Só para dizer que havia muito para falar!
E ouviu-se um beijo metálico (aqueles lábios degustando o telefone). Saiu do quarto. Deixara a coragem por ali. Pôs na bagagem a amargura, o pecado e a perdição. Porque já tinha gozado de uma vez.
Bateu com a porta. A fechadura gemeu. O vidro se estilhaçou no chão. A placa caiu: quarto 77. Pagou. Deixou o néon: “Motel Perdición”. Acendeu um cigarro e deixou a fumaça na noite. Pensou: ”Mesmo sabendo, eu faria!”
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