O meu, também, (maestro) carioca António Carlos Jobim faria, hoje, 83 anos.
segunda-feira, janeiro 25, 2010
terça-feira, janeiro 19, 2010
Pashtina de Bielman F.
Quando ele chegou a Pashtina, essa cidade imaginária que todos temos dentro de nós, como dores irreais que nos arrancam do sossego da nossa cama quieta e quente, viu pessoas a dormirem em autocarros queimados. Viu casas em ruínas, poeira que se entranhava nos pulmões e homens de cabelos compridos, envelhecidos, gastos pelo vento e pelo suor do descontentamento.
Sentou-se naquele autocarro, justamente naquele onde viu o nome dela gravado num dos bancos, o das janelas estilhaçadas, talvez pela pilhagem dos homens que ali dormiam, sem mulheres para fornicar, ou lhes aquecer o corpo frio, depois, de tanto suar, e lhes lamber as feridas envelhecidas, sobretudo as de dentro, que as de fora já estavam em putrefacção, numa solidariedade colectiva que torna os homens de Pashtina os mais sofridos e merecedores da angústia. Ele viu o nome dela. Há muito que não via o nome dela. Chegou a andar noites, depois do expediente, para procurar, de novo, o nome dela escrito em letras garrafais naquelas paredes. Deu faltas injustificadas na repartição das finanças, onde trabalha, diligentemente, mas discreto, há 30 anos, sem que o chefe saiba, afinal quem é Bielman F., só para reencontrar o nome dela onde quer que fosse naquela cidade.
Nunca mais o viu e, depois disso, tratou de arranjar outra obsessão, ou outra namorada imaginária, como lhe chegaram a dizer na repartição das finanças. E, lá estava: naquele dia vira o nome dela. Em Pashtina. Anos depois.
Bielman F. percorre, recorrentemente, lugares estranhos. Alguns imaginários, sofregamente, que a memória lhe traz de tempos que nunca sabe se conheceu. Ele também não sabe, sequer, por que o autocarro que apanha, ao fim do dia, depois do expediente, o leva aos subúrbios do que acha ser – porque Bielman F. não é homem de saber estas coisas – a alma humana, em putrefacção. Ele vê muitos lugares assim. Chega até a dormir por lá, porque não consegue achar o caminho que o leva a casa. Mas depois de adormecer (não quando quer, mas sem dar por ela), acorda sempre no desvão empoeirado daquele beco sem saída que o salário da repartição lhe permite pagar.
Quando a eles vai parar, aos lugares estranhos (tantos, que poderia enlouquecer!)Bielman F, contou-me, acha que fica numa espécie de capa invisível e que ninguém o vê, porque nunca meteram conversa com ele. Não que ele seja um exemplo de comunicação, sempre de olhos metidos no chão, a ruminar por que a vida lhe traz Invernos tão rigorosos, como a infância vivida a pão, papas e vinho avinagrado, para enganar a bolor entranhado. E, depois, aquele ar insalubre, de cabelo lambido de óleo hormonal acaba por ter uma espécie de efeito repelente. Há outra coisa, porém, que o leva a pensar que isso não é suficiente. Por isso, quando chegou a Pashtina, que talvez exista, de verdade, no nome de algum letreiro de autocarro; possa até ser terminal de alguma coisa, nome de alguma cidade de interior onde vivem homens mais felizes, sem putrefacção, ou bolores que tornam a vida um fungo entranhado do qual ninguém se livra nunca; ele fingiu que dormia.
Em vez de explorar essa terra de homens carcomidos, Bielman F., cansado dos lugares a que vai sem pedir, resolveu ser um farsante na arte do sono. Encolheu-se muito, quase a abraçar-se. Encostou a cabeça ao ombro, entortou-se para se acomodar no banco disforme e, contou-me, simulou uma respiração profunda, quase a roncar. E ele, sei-o, não ressona. Não demorou mais de um minuto este número de teatro barato, quando ouviu ruídos de bichos, achou, que não conhecia, ou talvez fossem os homens que agoniavam das feridas em putrefacção, sem mulheres para as lamber, limpar e curar.
Incomodou-se com aqueles barulhos estridentes, como se a agonia fosse um assobio canino intermitente que traz os poros à condição de galinha e lhe entra com um vento gelado pelo corpo. Pela primeira vez, Bielman F. incomodou-se verdadeiramente por tamanha condição humana (ou talvez a sua), numa terra onde, parecia, o sol nunca entrava para secar as lágrimas que eles nunca antes tinham feito jorrar, mas gostariam, por não saberem que condição é essa de aliviar o sufoco com líquidos salgados que podem sair dos olhos. Ele não aguentou. Irritou-se, até, e apeteceu-lhe berrar um “calem-se”, para ficar mais aliviado e poder, quem sabe, continuar a farsa da sonolência, do ressonar, e da indelével indiferença premeditada. Pôs as mãos nos bolsos, tirou um cigarro e usou-o como "conta-tempo" para decidir o que deveria fazer; e como poderia sair dali, de Pashtina, que estava a tornar-se uma valsa lenta de agonias. E logo ele que não era homem para essas coisas.
Esses seres de cabelos compridos, unhas enegrecidas, rostos farruscos, rugas profundas em caras que aparentavam acabar de conhecer a puberdade e que pareciam desenhadas com cinzeis empurrados por mãos pesadas, não se moveram de si.
Aquele som, afiança Bielman F., só ele ouviu. Não olharam, não perceberem o fumo do cigarro, fingiram, talvez, que Bielman F. não existia realmente. Foi por isso que ele, sorvendo o cigarro lentamente, desconcertado e sem saber como sairia dali, demorou ainda outro cigarro, pedindo ao tempo que se demorasse. Depois levantou-se daquela cadeira de estofo rasgado, com o nome dela, pisou os escombros do autocarro queimado e caminhou sozinho pelas ruas, cheias de homens que aqueciam as mãos em latões de fogueiras infernais.
Viu lixo empilhado, electrodomésticos estragados, oxidados e despedaçados, sofás rasgados, cadeiras amputadas, quinquilharias e, talvez, tivesse visto monstros. Ele não soube contar-me quem ou o que eram aqueles homens maiores que estavam encostados aos prédios em chamas. Ele caminhou muito. Correu, quis gritar e não conseguiu. Quis abraçar-se e teve medo. Tentou falar com os homens mas eles não ouviam e sequer falavam entre si. Bielman F. teve medo, muito medo. Como nunca tivera alguma vez na vida. Ele nunca foi de ter medo. E não sabe dizer-me onde fica Pashtina e por que estava lá o nome dela, depois de anos desaparecido das paredes dos becos sem saída por onde anda.
E, talvez por isso, ele não sabe ao certo, Bielman F. chorou muito em Pashtina, soluçou e pensou que não tinha ninguém para lhe lamber as lágrimas, limpá-las e curá-las. Não chegou a fechar os olhos, mas não sabe dizer-me como chegou, no dia seguinte- talvez tenha acordado lá, já, ou despertado de um sonho profundo- até ao beco sem saída que tem por casa, aos lençóis frios que aquece com o corpo franzino e pontiagudo que o pão, as papas e o vinho avinagrado lhe deram como herança. Ele só sabe que chorou muito e teve medo. E que não quer nunca mais voltar a Pashtina. Jurou nunca mais apanhar aquele autocarro.
segunda-feira, janeiro 18, 2010
Motel Perdición (em pt do Brasil)
- Mesmo sabendo, você faria?
- Não achei que tivesse que te contar… O que nos corre no corpo e se traduz em beijos e mãos que vão escorregadias não se explica nunca. Se vive como se o momento fosse o último, com magnetismo e desnorte.
Acendeu o cigarro. O ar saiu seco. O rosto agoniou com o fumo e saiu a medo da boca, pausado. Os olhos umedeceram. A fumaça voou pelo quarto. As palavras foram atrás. Silêncio. O ar ficou denso. O peito ficou apertado e engoliu argumentos antes mesmo que eles soubessem que o eram. Ela no chão, envolta em lençóis de prazer, angustiada. Ele do alto, olhando as cortinas de veludo, em convulsão líquida interna para não ceder à vontade de a agarrar e apertar contra o peito. Mas homem vivido não se arrebata por vergonha dos cabelos brancos. E das rugas que servem de anticoncepcional ao parto de afectos.
- Não vamos falar por quê aconteceu. Melhor o silêncio e quebrar o tempo para que a memória guarde tudo como um sonho. Não tem mais futuro.
- Nunca falamos dele, nem do passado. Você disse que era o momento. Que tudo se reduzia a um gozo. Como a amor. E já ninguém morre de amor. Eu concordei.E já ninguém conta histórias assim. De longas noites de palavras e partilha. Com amanheceres no alto. E sem que a sofreguidão e a ansiedade do toque no corpo se intrometessem. Já ninguém se arrebata; e se deixa arrastar. Ou luta por ele. Falamos sempre de presente. Da textura da carpete no chão. De seu cheiro em minha pele. De nossa linguagem de sentidos sem traduções. Da leveza e do bom humor que nos agarra e cola os olhos ao pensamento, traduzindo sem legendas ou retóricas.
- É tarde!
- É sempre tarde, antes de ser o cedo que gostaríamos. Não há tempo ideal que nos registre a escala de sentimentos. A paixão é um gozo só. Ou vários. E que quer dormir depois para se encantar ao amanhecer. O amor é um gozo lento. Ou talvez nunca chegue a sê-lo.
-Você lembra daquele beijo? De seus lábios ainda guardando o vinho daquele jantar nas reentrâncias da boca como se fossem impressões digitais que marcavam os meus? Deixa, não responda. As memórias são para soltar. Nada mais importa, Jeane!.
Seis cigarros depois e as bocas adormecidas ferem, de novo. Sete cigarros por cada pecado. E aqueles que nunca sabemos se existem. Ainda partilharam um. O batom dela no filtro. O cheiro do corpo seduz a cinestesia à perdição, em adultério com os cheiros assépticos que as discussões devem ter. A deles não chegava a sê-lo, porque tudo acabara antes mesmo de começar.
Ela se levantou. A porta rangeu. Se ouviu os lençóis a deixaram o corpo: som de roça-na-pele: “flap”! Se vestiu. Não se tocaram. Não falaram. Não se olharam.
Ele deu o último gole no gin. Deixou cair a cinza na carpete que ainda ardia dela. O celular tocou.
- Só para dizer que havia muito para falar!
E ouviu-se um beijo metálico (aqueles lábios degustando o telefone). Saiu do quarto. Deixara a coragem por ali. Pôs na bagagem a amargura, o pecado e a perdição. Porque já tinha gozado de uma vez.
Bateu com a porta. A fechadura gemeu. O vidro se estilhaçou no chão. A placa caiu: quarto 77. Pagou. Deixou o néon: “Motel Perdición”. Acendeu um cigarro e deixou a fumaça na noite. Pensou: ”Mesmo sabendo, eu faria!”
- Não achei que tivesse que te contar… O que nos corre no corpo e se traduz em beijos e mãos que vão escorregadias não se explica nunca. Se vive como se o momento fosse o último, com magnetismo e desnorte.
Acendeu o cigarro. O ar saiu seco. O rosto agoniou com o fumo e saiu a medo da boca, pausado. Os olhos umedeceram. A fumaça voou pelo quarto. As palavras foram atrás. Silêncio. O ar ficou denso. O peito ficou apertado e engoliu argumentos antes mesmo que eles soubessem que o eram. Ela no chão, envolta em lençóis de prazer, angustiada. Ele do alto, olhando as cortinas de veludo, em convulsão líquida interna para não ceder à vontade de a agarrar e apertar contra o peito. Mas homem vivido não se arrebata por vergonha dos cabelos brancos. E das rugas que servem de anticoncepcional ao parto de afectos.
- Não vamos falar por quê aconteceu. Melhor o silêncio e quebrar o tempo para que a memória guarde tudo como um sonho. Não tem mais futuro.
- Nunca falamos dele, nem do passado. Você disse que era o momento. Que tudo se reduzia a um gozo. Como a amor. E já ninguém morre de amor. Eu concordei.E já ninguém conta histórias assim. De longas noites de palavras e partilha. Com amanheceres no alto. E sem que a sofreguidão e a ansiedade do toque no corpo se intrometessem. Já ninguém se arrebata; e se deixa arrastar. Ou luta por ele. Falamos sempre de presente. Da textura da carpete no chão. De seu cheiro em minha pele. De nossa linguagem de sentidos sem traduções. Da leveza e do bom humor que nos agarra e cola os olhos ao pensamento, traduzindo sem legendas ou retóricas.
- É tarde!
- É sempre tarde, antes de ser o cedo que gostaríamos. Não há tempo ideal que nos registre a escala de sentimentos. A paixão é um gozo só. Ou vários. E que quer dormir depois para se encantar ao amanhecer. O amor é um gozo lento. Ou talvez nunca chegue a sê-lo.
-Você lembra daquele beijo? De seus lábios ainda guardando o vinho daquele jantar nas reentrâncias da boca como se fossem impressões digitais que marcavam os meus? Deixa, não responda. As memórias são para soltar. Nada mais importa, Jeane!.
Seis cigarros depois e as bocas adormecidas ferem, de novo. Sete cigarros por cada pecado. E aqueles que nunca sabemos se existem. Ainda partilharam um. O batom dela no filtro. O cheiro do corpo seduz a cinestesia à perdição, em adultério com os cheiros assépticos que as discussões devem ter. A deles não chegava a sê-lo, porque tudo acabara antes mesmo de começar.
Ela se levantou. A porta rangeu. Se ouviu os lençóis a deixaram o corpo: som de roça-na-pele: “flap”! Se vestiu. Não se tocaram. Não falaram. Não se olharam.
Ele deu o último gole no gin. Deixou cair a cinza na carpete que ainda ardia dela. O celular tocou.
- Só para dizer que havia muito para falar!
E ouviu-se um beijo metálico (aqueles lábios degustando o telefone). Saiu do quarto. Deixara a coragem por ali. Pôs na bagagem a amargura, o pecado e a perdição. Porque já tinha gozado de uma vez.
Bateu com a porta. A fechadura gemeu. O vidro se estilhaçou no chão. A placa caiu: quarto 77. Pagou. Deixou o néon: “Motel Perdición”. Acendeu um cigarro e deixou a fumaça na noite. Pensou: ”Mesmo sabendo, eu faria!”
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(texto de Maio 2009),
ficções e foto por vnrodrigues
sexta-feira, janeiro 15, 2010
Peito A.berto e Gripe (B)Oba!
Há uma nova categoria de homens a surgir em Portugal. (Acho que a cada cinco anos, não sei se, por tendência geracional, se por influência do aquecimento global, há uma nova colheita do que serão os homens portugueses do futuro, e não auguro grande esperança para os interessados no género: estão cada vez mais rudes, para não desiludir a nossa "portugalidade"; têm comichões quando se pronuncia a palavra cavalheirismo, isso quando sabem sequer o que significa; são cada vez mais metrossexuais, e a querer parecer-se, em doses hiperbólicas, com estrelas de pop (ou até quem sabe com os cantores de um determinado programa de televisão).
Ainda não o são, mas um dia, vão fazer-se machos, viris, de pêlos no peito, por onde, agora, se sobrepõe o rosado de uma pele virgem para conquistas pélvicas, poro por poro. Um rosado que, na verdade, enrubesce com o frio glaciar (ou antárctico, ou nem uma coisa nem outra, porque não entendo nada disto) que se tem sentido na minha cidade emprestada (nasci em Matosinhos, por isso estou mais para peixeira do que para tripeira, embora por afinidade me considere a mais genuína portuense, do que muitos que por aí andam), e que anda a tomar conta dos peitos destes pseudo-homens lusitanos, imberbes, ainda. Eles chegam de todo o lado, não sei se é tendência no Norte - que é uma aldeia, praticamente, e se a categoria já se disseminou para o resto do país como a gripe e as constipações - andam na rua, estão nos bancos de jardins, à saídas das escolas; mas acho particularmente curiosa a passeata em grupos, em transportes públicos. O metro é o melhor lugar para vê-los. É onde perdem o glamour, com aquele sotaque cerrado, nasalado, do "Puorto", que acho ter o seu interesse, mas para estrela de pop, a coisa fica estranha. O importante mesmo é dizer que eles andam de peito aberto. Alguém mais desatento poderá pensar que me perdi por aqui e me quero, na realidade, referir à expressão solidária e abnegada de alguém que gosta de receber os outros de “peito aberto”. São truques que aprendi do outro lado do Atlântico, em terras de samba e gingado de palavras, que me elevam à categoria de uma perfeita farsante da linguagem (não acreditem numa palavra deste post, a não ser naquelas que dizem a verdade).
Estes “peitos abertos”, que muito tenho visto, observado, investigado, interpretado, mas com quem ainda não falei, são miúdos de 15 e 16 anos que, para dizer a verdade (porque até aqui tudo era mentira) são verdadeiros heróis, grandes meditadores do zen budismo, por vencer essa perdição do corpo rendido ao frio (Lembro-me, a propósito, de uma vez na Finlândia, com neve, neve, neve, menos 7 graus, um activista ir para as aulas apenas vestido com uns calções de ganga e sandálias, numa caminhada de meia hora. Aquilo é que era um peito aberto. Talvez a coisa tenha vindo daí).
Agora, enquanto eu, do alto da minha constipação (ou gripe B, como lhe chamo: de “boba”, porque todas as gripes são uma perda de tempo), encasacada, de cachecol até às orelhas, chapéu, sobretudo, botas e meias de lã quentinhas, tento, elegantemente, caminhar pelas ruas da minha cidade emprestada, estes miúdos, de camisolas em lã fininhas e decote em V, pavoneiam-se, mais elegantemente que qualquer outra pessoa na rua, sem t-shirt a servir de forro para o peito, sem casaco, nuns sibéricos (pirinéicos, andinos, patagónicos, sei lá) nove graus, de peito à mostra, rosado pelo frio, virgem, qual pop star no seu mais alto glamour, pronto para os paparazzi, mas sem um pingo no nariz, sem um tossir brônquico, ou outros indícios de uma gripe Boba. Assim de repente ocorre-me que nem sequer um casaco eles têm para oferecer a alguém interessado no género destes "um-dia-homens" e é só isso que verdadeiramente me preocupa. Isso e a gripe B, que ainda não curei.
Ainda não o são, mas um dia, vão fazer-se machos, viris, de pêlos no peito, por onde, agora, se sobrepõe o rosado de uma pele virgem para conquistas pélvicas, poro por poro. Um rosado que, na verdade, enrubesce com o frio glaciar (ou antárctico, ou nem uma coisa nem outra, porque não entendo nada disto) que se tem sentido na minha cidade emprestada (nasci em Matosinhos, por isso estou mais para peixeira do que para tripeira, embora por afinidade me considere a mais genuína portuense, do que muitos que por aí andam), e que anda a tomar conta dos peitos destes pseudo-homens lusitanos, imberbes, ainda. Eles chegam de todo o lado, não sei se é tendência no Norte - que é uma aldeia, praticamente, e se a categoria já se disseminou para o resto do país como a gripe e as constipações - andam na rua, estão nos bancos de jardins, à saídas das escolas; mas acho particularmente curiosa a passeata em grupos, em transportes públicos. O metro é o melhor lugar para vê-los. É onde perdem o glamour, com aquele sotaque cerrado, nasalado, do "Puorto", que acho ter o seu interesse, mas para estrela de pop, a coisa fica estranha. O importante mesmo é dizer que eles andam de peito aberto. Alguém mais desatento poderá pensar que me perdi por aqui e me quero, na realidade, referir à expressão solidária e abnegada de alguém que gosta de receber os outros de “peito aberto”. São truques que aprendi do outro lado do Atlântico, em terras de samba e gingado de palavras, que me elevam à categoria de uma perfeita farsante da linguagem (não acreditem numa palavra deste post, a não ser naquelas que dizem a verdade).
Estes “peitos abertos”, que muito tenho visto, observado, investigado, interpretado, mas com quem ainda não falei, são miúdos de 15 e 16 anos que, para dizer a verdade (porque até aqui tudo era mentira) são verdadeiros heróis, grandes meditadores do zen budismo, por vencer essa perdição do corpo rendido ao frio (Lembro-me, a propósito, de uma vez na Finlândia, com neve, neve, neve, menos 7 graus, um activista ir para as aulas apenas vestido com uns calções de ganga e sandálias, numa caminhada de meia hora. Aquilo é que era um peito aberto. Talvez a coisa tenha vindo daí).
Agora, enquanto eu, do alto da minha constipação (ou gripe B, como lhe chamo: de “boba”, porque todas as gripes são uma perda de tempo), encasacada, de cachecol até às orelhas, chapéu, sobretudo, botas e meias de lã quentinhas, tento, elegantemente, caminhar pelas ruas da minha cidade emprestada, estes miúdos, de camisolas em lã fininhas e decote em V, pavoneiam-se, mais elegantemente que qualquer outra pessoa na rua, sem t-shirt a servir de forro para o peito, sem casaco, nuns sibéricos (pirinéicos, andinos, patagónicos, sei lá) nove graus, de peito à mostra, rosado pelo frio, virgem, qual pop star no seu mais alto glamour, pronto para os paparazzi, mas sem um pingo no nariz, sem um tossir brônquico, ou outros indícios de uma gripe Boba. Assim de repente ocorre-me que nem sequer um casaco eles têm para oferecer a alguém interessado no género destes "um-dia-homens" e é só isso que verdadeiramente me preocupa. Isso e a gripe B, que ainda não curei.
segunda-feira, janeiro 11, 2010
Frida Kahlo, o tempo como catarse dos nossos vícios
Ainda não tinha visto o filme de Julie Taymor, com Salma Hayek (e a sua brutal e desconcertante semelhança com a pintora mexicana Frida Kahlo). Era um dos DVD´s que estavam esquecidos no armário de casa dos meus pais e que recordo ter comprado numa dessas promoções de fim de ano. Três anos depois, num segundo “round” depois do “À Prova de Morte” do Tarantino, ontem, enrolada na manta, com o vento frio a rugir lá Poderia falar da fotografia, das cenas espectaculares que recriam quadros da Frida, da representação brilhante de Hayek e Alfred Molina (Diego Rivera), e outras observações intelectuais exigidas por quem se preze a criticar um filme. Deixo isso para quem entende realmente da coisa, até porque é o "invisível" que me é "essencial aos olhos".
O que é realmente belíssimo, tal como no documentário de Vinicius de Moraes (Miguel Faria Jr), ou no “Into the Wild” do Sean Penn, são as várias lições de tempo do filme sobre a Frida, da importância da procura da insatisfação pela constante satisfação de nadas e agoras, do amor, do sexo por sexo, ou do sexo por contextos, da criação, da ansiedade como procura do interior, e da cegueira do nosso quotidiano, que nos vicia numa imensa redoma em contraluz que nos arranca do essencial. Talvez “a condição humana” seja mesmo essa (perdoe-me o André Malraux) que nos torna realmente mais sartrianos do que sabemos ser (somos profundamente estrangeiros de nós): a dos vícios que toldam a nossa história em recriações deturpadas do essencial (e por elas, no nosso contexto ou até mesmo nas utopias interiores, recriamos um mundo só nosso, que nos fecha num hermético globo de percepções individuais).
É como se em todas as lições de tempo precisássemos de um choque de contrariedades que nos questionem os vícios de personalidade, do dia-a-dia, dos nossos, dos outros. Por exemplo, há um momento em que Kahlo recebe um telegrama, nos EUA, sobre a mãe doente, no México, e se apressa a abraçá-la na casa da sua infância. Depois, já lá, vai ter com o pai, angustiado, que tenta arranjar as flores do jardim que a mãe diligentemente cuidava, para que não se morram, com receio de que esposa lhe ralhe, ainda que enferma. Ele quase nunca cuidou das flores; desabafa que houve momentos em que achava que nunca tinha gostado dela, que a detestava, até; confidencia-lhe que, depois de tantos anos juntos, as pessoas já nem sabem o que sentem, discutem muito, e num embalo de uma relação deteriorada, como muitas, tantas, desses vícios da intimidade, que nos podem tornar tão desumanamente frios e pérfidos (estrangeiros de nós?) com alguém que partilhou tanto da nossa intimidade, deixam-se estar quietinhas à espera de sobreviver até ao fim, e a fazer mal um ao outro, por medos e, paradoxalmente, pelos mesmos vícios interiores. Frida abraça-o, põe a flor morta no ouvido. Ela própria viveria o dilema da relação deteriorada (pelas constantes infidelidades) com Diego Rivera (“É melhor separarmo-nos. Damos-nos melhor como amigos e companheiros do que como marido e mulher”). Kahlo fica destroçada. Anos mais tarde envolver-se-ia com Trotsky, exilado na casa do pai dela, a pedido de Rivera. Mais outro punhado de anos e Diego volta para ela, como quem volta para o útero (e Kahlo já estava, nessa altura, muito debilitada, cheia de dívidas, mais azeda, amarga, mas intensamente lutadora pelo tempo em si). Só que o essencial é isso, o tempo em nós. Visto assim, numa retrospectiva de uma vida, com uma hora e cinquenta minutos, com cortes e recriações do que possa ter sido a vida de uma mulher, que nos momentos de maior angústia pintava com as dores de dentro, parindo sempre as catárses que a libertavam dos vícios de um mundo hiperbolicamente pessoal, sofrido e destroçado, é uma imensa lição de vida, de tempo, de leves adormeceres para um imenso e mais maduro amanhã. O essencial é sempre esse, na realidade, o aprendermos a gerir o caos que há em nós, promovermos as contrariedades constantes para ver o essencial, para quem sabe pouparmos anos de azedume, porque sabemos que o mais importante está sempre ao redor de nós, contrariando os nossos vícios de teimar em ser estrangeiros de nós...
quinta-feira, janeiro 07, 2010
Regresso silencioso
O meu amigo N. Ferraz enviou-me, há pouco, um link com um texto do Paul Theroux, sobre uma viagem no "Expresso da Patagónia". Estava lá tudo. As gentes, os gestos, as percepções, as angústias, a leveza, a solidão, a ternura dos outros, a vida dos desconhecidos, na partilha de tanto; os sons, a percepção aguçada dos sentimentos que em nós vão fervilhando. Tudo isso, como se viajar fosse, apesar da experiência pessoal, uma grande festa universal, para os atentos que gostam de sentir, simplesmente. Antes de uma viagem ali, aonde for, ao redor de nada, de tudo, ou simplesmente do vento, viajar é uma viagem a nós, cá dentro, num carrossel autista. O que deitamos cá para fora, depois, é mais nosso e rico, do que a marca que deixámos num qualquer lugar que nunca mais se lembrará das nossas pegadas. Só que Theroux tocou no essencial, para mim, para me entender, para me alertar do perigo e da tirania dos regressos.
Voltar da Amazónia, das Amazónias, das viagens ao interior de mim e ao redor de um pedaço de mundo, foi a experiência mais dolorosa que até aqui tive. Tudo lá foi intenso, com momentos menos bons, mas de bela transformação. Só que o mais difícil, foi o regresso. Este regresso, a mim. Nada mais dilacerante do que o regresso. Foi duro, pesado, não pela minha urbanidade, pelo desejo de uma cama fofa, comida caseira, abraços quentinhos e carinhosos, mas porque já não era a mesma Vanessa que foi. Sabia-o, claro. Queria-o, tanto. Mas voltei profundamente silenciosa, inadaptada, recolhida, confusa com tudo ao redor: os barulhos, as pessoas, a urbanidade, as conversas que me irritavam de tão superficiais, desnecessárias e vazias. Para mim, que estava sensível, como se tudo fosse uma imensa primeira vez, carcomia-me a respiração ofegante, ansiosa. Não queria estar, falar com ninguém. Voltei, sim, profundamente silenciosa, em apneia voluntária dos pensamentos, como se mais nada importasse. Voltei num estado que não o sou, triste, acabrunhada e revoltada com a intensidade da mudança que não percebia, ou percebo bem em quê. Viajar é uma desaparição. E, viajar assim, é viver demasiados anos, em poucos meses. É escrever rugas e cabelos brancos com itinerâncias e histórias de vida, que se tornam a nossa. É ir até ao esquecimento. Ir até à importância dos olhos virgens dali, e voltar com sentido, com os olhos cansados, de tanto (vi)ver...
quarta-feira, janeiro 06, 2010
Cartas
Gosto de postais, de cartas, de papéis avulsos, de cadernos. Há qualquer coisa de mágico em escrever-se sobre aquele momento para alguém, naquele pedaço de papel. Por isso, ao longo destes quase 4 anos de Brasil acumulei resmas de papéis, cadernos, postais e papéis avulsos; entre outras colecções involuntárias. A mala veio mais pesada porque não sabia o que lhes fazer do outro lado do Atlântico. Esse exercício de, finalmente, decidir se deveria rasgá-los ou guardá-los não poderia ser feito de uma forma qualquer. Merecia um ritual, pausado, e com disposição. Hoje comecei essa empreitada, que, para dor de cabeça dos meus pais, já andava a arrastar-se há uns dias - mas a anestesia de ter a filha emigrante que regressa a casa tem um efeito de tolerância sobre a desarrumação do quarto e do hall dos quartos (CD´s, livros, mais CD´S, papéis avulsos, revistas, postais, cartas, e mais CD´s). No meio dessa confusão descobri um postal que escrevi para o meu irmão a 3 de Novembro de 2008 e que acabou por ficar perdido no meio de tudo e de nada. Nunca lhe cheguei a enviar e acabei de o pousar na almofada. Lembro-me bem ao que me referia e resgatar esse momento foi perceber o quão distante no tempo já está, como se anos, enfim, tivessem já passado. E São Paulo é isto no tempo: vive-se com a percepção de que um mês parecem outros tantos...
Aqui caminha-se com os olhos no chão com medo dos gigantes do céu. Há lojas 24 horas, hospital de sapatilhas, homens que dormem na rua- e a rua como casa, num chão que todos olham e ninguém vê. Aqui, stress é religião! As amizades são perecíveis e, por pouco, perde-se amigos - ou talvez nunca o tenham sido. Aqui o mundo é uma possibilidade e o Alfabeto um emaranhado de letras avulsas. Aqui sou um pouco mais mundo. Talvez nada, um chão sem rua, e uma rua que é casa.
Aqui caminha-se com os olhos no chão com medo dos gigantes do céu. Há lojas 24 horas, hospital de sapatilhas, homens que dormem na rua- e a rua como casa, num chão que todos olham e ninguém vê. Aqui, stress é religião! As amizades são perecíveis e, por pouco, perde-se amigos - ou talvez nunca o tenham sido. Aqui o mundo é uma possibilidade e o Alfabeto um emaranhado de letras avulsas. Aqui sou um pouco mais mundo. Talvez nada, um chão sem rua, e uma rua que é casa.
domingo, janeiro 03, 2010
Rasgar memórias
Às vezes ponho-me a vasculhar os textos antigos deste blog. Sinto vontade de apagar tudo e recomeçar de novo. "Como fui, algum dia, capaz de escrever uma parvoíce destas?", penso. E depois,a auto-punição: "densa", "hermética"; "que chatice". Mas depois entendo. Eles só continuam perdidos nesta densidade virtual, talvez para me lembrar que a intensidade das palavras, como os sentimentos, são profundamente contextuais e que a vida passa tão levezinha, em paralelo, que mesmo aquilo que não importa, e que já foi tão importante, como se fosse a última gota de água num imenso deserto, é apenas um meio para chegarmos a casa, a nós, e para percebermos o quanto crescemos, este tempo todo.
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