sábado, outubro 26, 2013

A teia de Ofélia


Durante o mês que Lis passou no Brasil não poderia imaginar que o seu quarto - caverna que, além da mobília, é povoada por livros novos e usados, revistas culturais, vinis, outras coisas inúteis, pó e, muito certamente, por seres microscópicos e invisíveis -, fora ocupado. Ela tentou expulsar a intrusa. Agarrou, subtil e silenciosamente, numa folha em branco, soergueu a patuda, equilibrando a tagmata aracnídea e zás: atirou-a pela janela. Achou que se tinha livrado da invasora.  
No dia seguinte, reconheceu o falhanço. A okupa voltara decidida a reivindicar o que considerava seu, por presumível abandono do espaço da proprietária legítima por 30 dias. Como engenheira-arquiteta competente tecera já a teia numa das estantes. Lis traçou mil e uma estratégias para o despejo, mas dona aranha mostrou-se resoluta a não arredar pata. A caçadora de histórias pensou: “cometeria um crime?” Mas não tinha mordomo-bode-expiatório. “Causaria ferimentos ligeiros? Suspeitariam, indubitavelmente, das suas capacidades facínoras. Lis perseguiu o aracnídeo entre prateleiras, tacos levantados, tinta enrugada, baús, debaixo da cama, ao redor de candeeiros e malas, qual funâmbula em vertigem. A rainha inabalável pôs-se em fuga, fintando livros há muito ali inquilinos. Primeiro, entre J. Rodrigues Miguéis, F. de Castro, A. Ribeiro, J. Saramago, saltando de lombada em lombada com destreza e intimidade de velhos amigos. Depois entre P. Auster, R. Kapuscinski, T. Wolfe, E. V. Matas e R. Bolaño. O golpe final - com certeza para fazer pouco de Lis, podemos adivinhar-lhe o risinho trocista- , foi alojar-se entre “O grande Sertão Veredas” de J. Guimarães Rosa e “A Grande Arte” de R. Fonseca. Toda esta perseguição levou Lis a concluir: “As aranhas são seres eruditos”. Batizou-a de Ofélia. Parecem viver felizes.

Crónica de Vanessa Rodrigues publicada a 25 de Outubro no Semanário Grande Porto, página Bairro dos Livros, iniciativa da editora CulturePrint, em alternância semanal com Jorge Palinhos, Rui Lage, Rui Manuel Amaral.

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