Durante o
mês que Lis passou no Brasil não poderia imaginar que o seu quarto
- caverna que, além da mobília, é povoada por livros novos e
usados, revistas culturais, vinis, outras coisas inúteis, pó e,
muito certamente, por seres microscópicos e invisíveis -, fora
ocupado. Ela tentou expulsar a intrusa. Agarrou, subtil e
silenciosamente, numa folha em branco, soergueu a patuda, equilibrando
a tagmata aracnídea e zás: atirou-a pela janela. Achou que se tinha
livrado da invasora.
No dia
seguinte, reconheceu o falhanço. A okupa voltara decidida a
reivindicar o que considerava seu, por presumível abandono do espaço
da proprietária legítima por 30 dias. Como engenheira-arquiteta
competente tecera já a teia numa das estantes. Lis traçou mil e uma
estratégias para o despejo, mas dona aranha mostrou-se resoluta a
não arredar pata. A caçadora de histórias pensou: “cometeria um
crime?” Mas não tinha mordomo-bode-expiatório. “Causaria
ferimentos ligeiros? Suspeitariam, indubitavelmente, das suas
capacidades facínoras. Lis
perseguiu o aracnídeo entre prateleiras, tacos levantados, tinta
enrugada, baús, debaixo da cama, ao redor de candeeiros e malas,
qual funâmbula em vertigem. A rainha inabalável pôs-se em fuga,
fintando livros há muito ali inquilinos. Primeiro, entre J.
Rodrigues Miguéis, F. de Castro, A. Ribeiro, J. Saramago, saltando
de lombada em lombada com destreza e intimidade de velhos amigos.
Depois entre P. Auster, R. Kapuscinski, T. Wolfe, E. V. Matas e R.
Bolaño. O golpe final - com certeza para fazer pouco de Lis, podemos
adivinhar-lhe o risinho trocista- , foi alojar-se entre “O grande
Sertão Veredas” de J. Guimarães Rosa e “A Grande Arte” de R.
Fonseca. Toda esta perseguição levou Lis a concluir: “As aranhas
são seres eruditos”. Batizou-a de Ofélia. Parecem viver felizes.
Crónica de Vanessa Rodrigues publicada a 25 de Outubro no Semanário Grande Porto, página Bairro dos Livros,
iniciativa da editora CulturePrint, em alternância semanal com Jorge
Palinhos, Rui Lage, Rui Manuel Amaral.
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