Há quem leve a sério aquilo que, à partida, pode parecer apenas uma figura de estilo. Mergulhar num livro pode parecer uma coisa tão improvável e fantasiosa, quando possível e simples de concretizar. Tal como dizer que a última viagem que fizemos foi até ao País das Maravilhas. E, por instantes, todos nós já fomos um pouco Alice: estivemos nesse mundo fantasioso, improvável, e voltamos com recordações reais. E eu sou Alice quando mergulho num livro. E gosto de mergulhar neles, mesmo sem garrafas de oxigénio. Há que perder o fôlego para que alguma coisa nos resgate em bafos boca-a-boca, ou nos lance a bóia. Sempre acontece, ainda que naufraguemos.
Houve até alguma prosa que me tirou o sono (Saramago fazio-o como ninguém) de tão intensa e envolvente. O Raduan Nassar foi um curto mas vivo naufágio. A Hilda Hilst é uma espécie de bunker-submarino: a pressão começa a rarear o oxigénio. O Gonçalo M. Tavares é um rochedo cercado de ondas que quebram quando menos esperamos e nos arrastam para a areia. Há outros que não passam de um chapinhar na água: ainda atiramos pedras a ver se fazem ricochete, mas são águas calmas - não vale a pena forçar uma corrente que nunca virá.
É. Resgatando a metáfora: mergulho tanto, às vezes, que parece que estou lá, ali, a viver a vida dos outros. Nos becos sem saída dos personagens, nas angústias, nos sentidos proibidos das avenidas dos afectos, dos amores, desamores, nas esquinas entre a angústia e rasgos de felicidade improvável, ou até mesmo nas descoordenadas do mapa que a vida vai desenhando, sem pistas para um planeamento. Mayday!
Mergulho tanto que parece que estou lá, dependendo da riqueza da linguagem, extensível ou não à outra que é só minha, nem certa nem errada, apenas demasiadas vezes intransmissível (houve alguém que me disse, certa vez, que sou hermética). Mas é essa linguagem vívida do autor, sinestésica, ainda que seca, rude, que nos estendem os sentidos, levando-nos ao quadro da diegese que se torna real. Eles podem levar-nos a cheirar a escatologia.
Mergulho tanto que parece que estou lá, dependendo da riqueza da linguagem, extensível ou não à outra que é só minha, nem certa nem errada, apenas demasiadas vezes intransmissível (houve alguém que me disse, certa vez, que sou hermética). Mas é essa linguagem vívida do autor, sinestésica, ainda que seca, rude, que nos estendem os sentidos, levando-nos ao quadro da diegese que se torna real. Eles podem levar-nos a cheirar a escatologia.
Desta vez, por exemplo, estou a ver a catinga do sertão, quase a morrer de fome com Sinhá Vitória, como se fosse um de seus filhos, nas Vidas Secas de Graciliano Ramos. Houve vezes, até, em que sonhei com personagens. Ou, mesmo nesse mundo onírico, acontece frequentemente debater-me com situações, que me incomodam e me dão pouco descanso, dignas de um mundo de Kafka. Ele anda aqui na cabeça. Nada agradável.
Entretanto, ontem, na esplanada do Centro Cultural Banco do Brasil, no centro de São Paulo, enquanto mergulhava de uma outra forma nas andanças de Sinhá Vitória, apercebi-me de alguém, na mesa ao lado, sob a penumbra cinzenta do fim de dia já, ainda mais mergulhado do que eu numa outra leitura. Não consegui perceber o título do livro que demandava tamanha dedicação do rapaz que o agarrava, como se se precavesse de alguma tentativa de roubo, perda. O rapaz, de costas vergadas, inclinava-se de cotovelos apoiados na mesa de madeira, óculos fundo de garrafa, e com as páginas coladas quase a eles – posso garantir que não distava mais do que 7cm. Acho que ele tentava mergulhar, levando ao pé da letra, a figura de estilo que dá título a este longo post (como costumam ser sempre os meus, herméticos, por sinal). Acho que ele tentava, inamovível, o exercício de imersão. Aposto que também ele queria ser Alice.
Sem comentários:
Enviar um comentário