sexta-feira, julho 30, 2010

Conversas com Hilda

Saí da rotação. Entendi o mecanismo biótico. Nós não, Hilda, explica. Como assim, não percebem? Fácil. Então o que é sair da rotação? Nem eu sei para falar verdade. Ok, mas tenta. Da outra vez estava no caos de mim, lembras-te? Oh, Hilda, és sempre tão complicada; o caos de ti. Que mania tens de intelectualizar o tu. Fala, assim, uma linguagem que se possa entender. Traduz, Hilda, traduz. Dá os sinais que tentarei entender. 

Sair da rotação é agarrar os azimutes: essas pontas descoordenadas que temos em nós, que nunca vemos e plaf, disparam em várias direcções. Se prestarmos atenção, devagarinho, sobretudo quando acordamos, percebemos os azimutes desalinhados. Agarramo-los sem que percebam, porque estão mais frágeis e visíveis quando a nossa cabeça abre os olhos e começa a pensar. Antes do exercício estou-no-mundo-outra-vez agarramo-los. Aí, podemos sair da rotação, se a houver. Mas há sempre uma rotação, e o corpo é o eixo que faz o mundo rodar, sem sairmos do lugar.

Gira, gira: os pensamentos entram-saem; outros entram e nunca chegam a sair. Há pensamentos velhos nessa rotação e nem damos conta deles. Estão lá todos misturados a contaminar os mais novos. Só que não me adiantou de nada ter saído da rotação. Se não é pela mesma, virá sempre outra. Se não é pela outra, vem sempre outro lugar intermédio que não deixa o corpo e cabeça soltos, assim agarradinhos, como se fossem almas gémeas. Mal me apercebi que saíra da elipse e flit. Deslizei no lugar-conflito. Oh, Hilda, tu és muito engraçada para encontrar palavras que, à partida, não fazem sentido algum. Disse “quase” Hilda, repara, porque sei que logo encontrarás uma resposta bem fundamentada do teu jeito.

É. Lugar-conflito. A palavra composta é essa. O vocabulário que temos à disposição não equivale necessariamente às palavras exactas que traduzem o que cá vai dentro. Há pergaminhos tão bem dobrados que desconhecemos. Há papéis soltos nas estantes dos nossos livros. Empoeirados. Novos. Sábios. Esquecidos. Que nunca leremos. Falham à catalogação. É esse mundo interior. E temos todos linguagens diferentes. O ponto de equilíbrio, raro, é só uma forma de nós não nos perdermos.


Estás a dar uma de filosofia à Woody Allen. Nada disso. O Woody é mais feliz que eu. Ri da vida, ri-se, graceja, salta, ri-se dele. Faz da vida uma comédia porque não tem outro remédio. Caso contrário estaria a ansiolíticos, preso numa camisa-de-forças. Depois, é evidente. O Woody sabe demasiado sobre a vida para se dar ao trabalho de inventar filosofias como perfeita psicanálise de si. Os filmes são a terapia de divã. Eficaz, parece.

No meu caso não há terapia que valha: nem pôr as mãos em água a correr, nem mexer em areia, nem dar gritos numa praia deserta, nem cantar no chuveiro, escrever livros, sexo, comida, plafff. Olha, nada disso. O problema é evidente e desse mal todos padecemos. Mal genético de humanidade. Ser-humano-em-efeito-de-fabrico. Aquilo que nos arrasta para a inércia é o lugar-conflito. E todos temos um lugar-conflito?

Nascemos com ele e vamos desenvolvendo-o cada vez mais. Sobretudo quanto maior for a dose  na receita da teimosia. Há diversos níveis. É preciso é saber identificá-lo. E eu percebi-o, assim que o efeito-rotação se foi. Não estou a perceber. 

Lugar-conflito, ó, é o filtro da neurose, insatisfação, plano intermédio que deixa a nossa vida em suspenso, ou na adversativa contínua, gerúndio-gerúndio em transe! Quando estamos bem, arranjamos forma de querer mais alguma coisa, quando estamos "gris" há sempre aquela masturbação mental incessante de solitários-pobres-coitados em modo vibração: eu-eu-eu. Quando acordámos de manhã, gostaríamos que ainda fosse madrugada para podermos dormir; quando estamos no WC, gostaríamos de estar na cozinha já a tomar o pequeno-almoço; quando fazemos alguma coisa de que não gostamos, gostaríamos de que o tempo se esgarçasse rápido; quando escrevemos um texto, queremos que ele termine logo; quando não escrevemos queremos muito escrever; quando nos apaixonamos gostaríamos de não nos ter apaixonado para nos apaixonarmos outra vez; quando saímos de nós queremos voltar, mas quando estamos dentro de nós, desejamos sair.

Percebes, nós somos lugar-conflito. Temos trincheiras onde nos encafuamos para lutar contra nós próprios. Precisamos de camisas de forças para nos defender. Vetamo-nos muito, quando o mais importante é saber perpetuar a adolescência como estado de transição permanente, antes que o boicote da balela da vida adulta faça das suas e torne o lugar-conflito num dínamo que dispara a cada 10 segundos. E sabes o que acontece quando lhe começas a dar ouvidos? Entras no efeito-rotação. 

Sem comentários: