Para se exercitar a paciência é preciso uma generosa e grande dose... de paciência, por ela própria. Sábia e senhora da arte de contenção, perante todo e qualquer estímulo exterior, ou interior, que se nos desarticula o pensamento, desalinha os eixos do atino, ou até mesmo das hormonas (sempre elas, tirania-da-perseguição), ela é uma mulher pesada, robusta e anafada de técnicas subtis conjugadas.
E, hoje, parece, para se adquirir essas técnicas de estado “zen” (i.e.: sou átomo etéreo: este mundo não é real, vanessa dixit) é preciso aprender primeiro, imagine-se, com outras milenares, como o zazen, a meditação zen budista, meditação transcendental, a mímica (um mimo!) e outros universos tão ou mais “este-é-o-meu-corpo-mas-eu-aqui-não-estou-topas?”. Topo.
Mas, nos últimos tempos, tenho-me apercebido que todas essas “técnicas”, qualquer que seja a “origem ou religião” (ou mimetismo), derivaram de uma outra técnica que, de tão óbvia, nos passa despercebida. BUFAR! Quem nunca ouviu alguém chamar-nos a atenção: “não bufes que não te adianta!” Topam? “Não bufes que não te adianta”: brilhante. Já vejo a Eva (ou lá o nome que ela tinha, se tinha) a tentar grunhir ao Adão (sou mulher, então é natural que veja as coisas por este prisma, sem qualquer senso de neutralidade), bufando, abanando-o, para que ele se acalmesse só porque não conseguiu caçar um dinossauro-bebé, porque ele é mais veloz que as pedras que ele lhe atirava).
Ou ainda, quem nunca ouviu alguém dizer: “Conta até Dez!”. Como se esse fosse a contagem necessária, algarismo-a-algarismo para dissipar e pulverizar a força da nervosidade fervilhante (linha divergente: tira-nos do sério) que têm os pólos negativos da nossa biologia. Como, certamente, nem Eva, nem Adão sabiam o que era contar (isto da quantidade devia ser algo como: há muito, ou há pouco, lá na caverna). Mas, parece óbvio: se bufarmos demasiado acelerados, quer isso dizer que perdemos as estribeiras. As nossas beiras (bochechas?) estridentes (barulhentas?).
Se bufarmos devagarinho, significa, então que até podemos assemelhar-nos a um animal espiritual, quase gurus: zen. Isto é: na técnica de bufar frouxamente, podemos esvaziar os pulmões e assim, oxigenar o cérebro e dar tempo para que ele perceba o grande pé-na-jaca que poderíamos estar prestes a pôr – como se a jaca pudesse metaforizar qualquer demonstração do ridículo, ou, simplesmente, da ténue fronteira que nos leva ao constrangimento. Fora os truques baratos do pleonasmo (paciência-precisa-de-paciência), explicamos.
Seis da tarde, praça da sé, São Paulo. Ainda lá não estive, porque ando com o mundo na cabeça, que se resume a uma sala com vista para a Av. Sumaré, motas a acelerar às quatro da manhã, autocarros com travões chiantes, enguiçados, e outras esquizofrenias a que a urbanidade obriga – ou é tudo apenas um crasso defeito de profissão. Mas há profissões mais felizes, aparentemente. Nessa mesma praça, recordo, estava um orador eloquente – qual Lula em convenção partidária – a falar sozinho.
De microfone na mão (acto performático), gesticulava, violentamente, controlando a respiração sem perder as estribeiras. Não bufava, nunca. O nirvana não morava nele, no entanto, o fôlego, à partida, descontrolado pelo verbo inflamado, reforço:loquaz, tem um pacto qualquer com aquele microfone direccional. Brada, propala, percebe-se, com inspira-expira cadenciado, a palavra do “senhor” (olhei em volta e não o encontrei) contra o diabo (o das estribeiras, talvez); e rematava que ainda havia tempo para a salvação (eu acho que não queria ser salva).
Todos os que passavam ignoravam o pobre homem que deve fazer daquilo uma profissão à séria, e seguiam, acelerados, com outra respiração. Se isto não é um exercício de paciência (ignoram-me, mas continuo bradando), não sei o que será. Lembro-me que, perto dele, dessa vez que o vi, estava um adepto dessas tais técnicas orientais (oooommmmmm), inamovível e inquebrantável perante o ruído da ambulância de sirene disparada, motas, carros, sinos a dobrar pela morte de alguém, e mais a amplificação das sonoridades que pode ter uma urbanidade a borbulhar de gente.
Mas mais impressionante, (se a paciência o trouxe até este período do post, certamente bufou, devagarinho) foi o homem da mala. Esse é o cara. Chegou calado. Tirou o casaco. Abriu a mala. Fingiu tirar de lá alguma coisa e pôs toda a gente que passava magnetizada nele: nos gestos leves, pairando, exagerados, como se os aumentasse à realidade da caricatura dos movimentos. Burlesco, quase. E fez tudo isso com o silêncio. O pobre homem arrebatado de microfone terá, então, perdido a paciência e deu um quase-bufo. Quase, porque o verdadeiro viria depois. O microfone traiu-o. Bufou. Começou a bufar cada vez mais acelerado. A população aproximava-se, mais e mais, do homem da mala, que continuava sem ter nada dentro dela. Parece que gostamos que nos enganem com o nada, fingindo.
Ele bufou. Bufou, enraivecido. Gritou “Diabo”, pude ouvi-lo. “Diabo”, vociferou, novamente. Mesmo assim, ninguém o olhava, ninguém com ele se incomodava, como se não existisse. E esse, asseguro, é o melhor exercício de paciência e contenção que pode existir.