Há dias ouvi dizer que nós por aqui somos pouco solidários. Nunca me tinha ocorrido pensar nisso, sob a lógica do peso da crítica, até ter começado a julgá-la com distância: o que será que isso quereria dizer e de que forma isso se reflectiria na nossa portugalidade? A conclusão foi aziaga, pouco recomendável. Ainda assim, um exercício de Antropologia.
Em geral, somos sim, pouco solidários. Nas mais pequenas coisas. Nas essenciais, talvez. Somos amigos dos nossos amigos, em princípio. OK. Mas isso não significa solidariedade. Aderimos a causas, inventamos várias até no Facebook - todas absurdas, vamos combinar! - somos os primeiros a criar uma conta para tragédias; e por aí. Mas isso também não faz de nós solidários. Nem chega perto. O que me leva a concluir que somos, isso sim, oportunistas. Solidariedade é outra coisa e bem diferente. Tem de estar intrínseca e abnegada.
Por isso, falo em geral, numa coisa arraigada no sangue das veias rijas da Antropologia que nos tece. E não dos momentos em que empurramos a cadeira de rodas, em que ajudamos o invisual a atravessar a rua (que na maioria das vezes nem precisa que o atravessemos, é apenas o nosso pretensiosismo de cultura do coitado que nos impele, isso sim intrínseco); estamos prontos a dar direcções aos turistas se os vimos desorientados (antes não o fizéssemos, eles na verdade não entendem nada -nem nós!: "Está a ver aquele posto de gasolina lá ao fundo da rua? Não tem nada a ver. Tem de virar à direita antes dele), ouvimos pacientemente a velhinha do lado a falar das doenças que a tece. E até chegamos a pensar que, por isso, fizemos a nossa boa acção do dia. Solidariedade que a é nem sequer se lembra de invocar que é uma boa acção, quanto mais quantificá-la. Em síntese: nada disto faz de nós solidários. Chumbamos no teste, culturalmente, com distinção!
Se vimos alguém carregado no autocarro cheio de gente, quantos de nós, sentados, ainda perguntamos se quer que lhe segure na coisa? Fingimos muitas vezes não estar atentos ao sofrimento do outro. Temos pouca paciência. Se alguém faz sucesso, criticamos-lhes os tiques, os desaires, as frustrações. Procuramos o mínimo sinal de fracasso, para fazer disso notícia. Para propalar mais! Invejamos. Humilhamos, indelevelmente. Somos intransigentes. Intolerantes.
Se alguém expõe alguém é quando o nosso conceito de solidariedade mais se empola: não nos fazemos rogados de entrar na contenda e esmiuçar em colectivo (até porque solidariedade não significa, afinal, adesão ou apoio a uma causa?)
Na escola, enquanto adolescentes, sobretudo, começamos a perceber o que é a mesquinhez e a inveja e que, para sobreviver temos de aderir a grupos, sem jogos de diplomacia possíveis, ou estaremos sempre condenados ao isolamento ou à chacota. A coisa prolonga-se, depois, na vida adulta. E com o enrijecer tornamo-nos menos solidários. De laços líquidos. Convém não atar muito que é para quando desatarmos quase não se note. Em solidariedade, fazemos isso demasiadas vezes.
Invejamos, somos mesquinhos, vetamos o talento dos outros, boicotamos, dizemos que à partida nada vai dar certo, somos pessimistas. Não sei qual o povo mais solidário, se isso poderá ser mais biologicamente intrínseco do que sei, mas já vi, noutras culturas, nas pequenas coisas, mais sinais de solidariedade do que o ambiente que nos faz gente por aqui. E, talvez por isso, a antologia na nossa portugalidade seja escrita em silêncio, a tinta cinzenta, e que, parece, fingimos ter tanta dificuldade em perceber. Talvez, por isso, nunca mudaremos para um poucochinho melhor. Quem sabe, um dia destes, não haverá uma causa dessas ("vamos mudar portugal, a começar pelo que entendemos de solidariedade") que vire moda, e aí, no elo da corrente, nos deixemos ir, em solidariedade, porque até é giro.
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