Tens sempre as mãos sujas. As reentrâncias das unhas escurecidas. Não te lembras da última vez que as esvaziaste. E os pés, nus, arrastam-se pela calçada, lentos, como se a varressem, como se quisesses deixar um pouco de ti, esfoliando a derme, expulsando pedaços do que já não importa. Esvazias assim o que resta. E, ainda que o cabelo te abunde, desgrenhado, agarrado à raiz na esperança de sobreviver mais um pouco a esse pedaço de naco em que te tornaste, és desprovido de fios, como os da vida, como os do tempo. Uma não-vida, não pode ser avaliada assim. Mas é-o. É-o sempre Bielman. E, hoje, com o vento que te arrastou em ziguezagues pela mesma calçada que tacteias todos os dias (podes ouvir-lhe os segredos como mais ninguém) deixaste-te quase voar. Podia jurar que quase voaste. Levitaste um pouco, confidencia-me. Há muito que não me confidencias nada. Mas estás ali no passeio, silencioso, a ver os carros passar em alta velocidade. E as motas. São as motas que mais te impressionam, irritam-te, deixam-te irascível, inconsequente. Nesses grunhidos que te ouvi, certamente praguejaste algo contra elas. Uma ausência de respeito para pessoas como tu, que deitam o corpo no naco de cimento, em que deitas o naco de ti, imberbe, como se não existisse, à espera que alguma coisa te leve, nem que seja o vento de amanhã, que não virá. Se te falasse, dir-te-ia: “Bielman, amanhã, na meteorologia não haverá vento. Virá a chuva, e a descida vertiginosa da temperatura. Agarra-te ao corpo e ao que resta de ti, para que não voltes a passar frio, para que o bafo que de ti saia não seja o espectro etéreo que disparas dos pulmões para a vida”. Com certeza, responder-me-ias, como Bielman, e eu sei que Bielman não existe, ou está em todos, ou o que resta de nós. “Não há frio que me encolha, ou me mingue o que resta! Sou um corpo gélido, assim parido à nascença, com pulsação antárctida de existir e não ser. Desde que me conheço, deverias saber, sou uma gélida sombra que existe só quando tu me vês”.
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