Sentaram-se à mesa para se olharem. Ver quem aguentava ficar em silêncio mais tempo. Uns começaram a passar as mãos pela mesa envelhecida, esventrada aos poucos pelo oxigénio que entrara lento, lapidar, onde havia pedaços escurecidos, falhas, veios, farpas de madeira a querer sair. As mãos passeavam, vagarosamente, os sulcos, onde, certamente, moravam restos e memórias de outros momentos assim.
Alguns olhavam-se. Ela evitava os olhos dele. Ele os dela. Ele os da outra. A outra os dos outros e todos se fechavam, sepultando, momentaneamente as palavras. Ela verteu vinho, tinto. A gota deslizou pelo copo, livre, vagarosamente até à ponta da impressão digital do indicador dela. Chupou a gota. E houve menos silêncio. Sorriram. Qual será o ruído que fazem os músculos de um movimento assim, a exercitar o quadro do quase-riso? É quase-riso. Continuou a valsa lenta do néctar de Baco, invejoso certamente, de não lhe poder provar, também, as texturas das carnes dos lábios. Um a um, os copos foram-se enchendo, também de ruído líquido. Glac. No copo. Beberam. Cada um a seu tempo. Fecharam os olhos. Ouviram-se. Veio o respirar. Haveria menos silêncio. Há sempre menos silêncio quando se fecha os olhos.
Ouviram-se lágrimas. Haveria, assim, menos silêncio. Os olhos fechados. A venda voluntária. A ausência. E ouviu-se o calor. Haveria menos silêncio. Ela acendeu a vela. O fósforo. Um, dois, três. Ela nunca teve aptidão para mexer nos fósforos. Ele cedeu-lhe o isqueiro. Olharam-se. Um olhar assexuado, ainda que no silêncio, nessa cadência necessária para ler sentimentos. A vela: haveria vela. E uma chama bruxuleante a dançar no ar. Veio o distúrbio. A primeira imagem do distúrbio e da complexidade do tique-taque que lhes pulsa. Ela quebrou o silêncio, que já não havia. Haveria, por isso, menos sossego. Quantos ritmos tem um sossego? O tempo. Ela falou do tempo. Ele reduziu-o a uma série de equações físicas. Ela emprestou-lhe a palavra falando das equações químicas. Como se o tempo fosse só isso: energia. O tempo é energia, bradou.
Nada: o tempo é uma linha escorreita que nos leva à perdição. Por maus caminhos. Para a incompletude dos projectos que vetamos. O tempo é boicote. Escapes. Saliências que não vemos. Não poderia, ele, discordar mais. O tempo é ausência. É abnegação daqui para existirmos. Nada. Não queria as divagações. Não queria a Filosofia. Não queria a Teologia, ou outra qualquer teoria transcendental. O tempo é aqui. É isto. Vê! Não. O tempo é perda. É o exacto pedaço que vemos, como queremos ver. A gota, aquela que ela sugou, quanto tempo demorou ela a fazê-la. E tu, que viste? Mediste o tempo? Há quanto tempo aqui estamos, a discorrê-lo, como novelo de lã, para dobarmos palavras incompletas para entender a neurobiologia que nos assiste em decifrá-lo.
Pára. O tempo não existe. Não somos, nem sequer aqui estamos. O tempo, disse ela, é a vela que arde até ao fim. E o tempo aqui é mais lento do que o do outro lado, por isso, parece existirmos mais. Nada, não é nada. Não é absolutamente nada. Não entendeste. Não fales. Queda-te em silêncio, de novo. Vamos tentar outra vez. De qualquer das formas, disse ele, nós não somos todos os que aqui estamos. Alguns de nós nunca aqui estivemos. E esta conversa nunca existiu. Nós nunca nos encontrámos.