Acontece-me sucessivamente. Ocorre ao abrir uma gaveta, um armário, um guarda-vestidos, ao olhar debaixo da cama, caixotes, dentro de livros, ao vasculhar as estantes, caixas, sacos, malas e carteiras, entre agendas. Só não acontece debaixo das carpetes ou tacos, porque não me dei ao trabalho de os remover. Nem no quintal, debaixo de terra fofa, onde não me lembro se alguma vez terei enterrado um tesouro, um mealheiro com escudos, uma carta de Amor precoce, um dente, uma trança. (A trança tenho-a no baú do Brasil, pequenina, que me fez um homem em Porto Seguro. Bela metáfora, portanto).
Acontece-me recorrentemente talvez porque guardo tudo, até o bilhete de metro daquela viagem em Budapeste; à conta da cachaça no BH em São Paulo. Sucede-me encontrar memórias, daquelas que havia esquecido. Com o tempo acredito que começo a guardar menos coisas, desenvencilhando-me do abuso que é ter papéis e folhas soltas, postais e contas de restaurantes.
A minha mãe chama-lhe lixo, é certo. Talvez tenha razão. Talvez, por isso, entro em pânico sempre que me diz que arrumou o quarto que já pouco ou nada habito. Arrumar para mim, aquele quarto, é tirar um pedaço de mim. Aquele cartão, aquela moeda, aquele botão... Tudo tem uma lógica, corrijo-lhe um pouco nervosa já, com as mãos suadas, palpitações, arritmia evidente. (Chamem o médico, se faz favor que isto não vai correr nada bem. Oxigénio, exercícios zen, Yoga ajuda.)
Eu insisto nas memórias. Deixo-as soltas, olvidadas, entregues ao pó e às traças, à humidade dos Invernos, à secura dos Verões, às aranhas e outros seres microscópicos que se alimentam de memórias físicas. Acontece-me recorrentemente, quiçá, porque tenho propensão para coleccionar aquilo que não se coleciona: o presente de um já passado.
Dá-se, frequentemente, por ventura, ou porque vivo muito (benzo-me perante a falta de humildade e relativa análise do que isso será), ou porque estou a ficar velha e guardo já demasiadas lembranças com generosidade feliz para as que ainda possam vir.
Eu vou dizer o que me ocorre: encontrar fotos antigas, postais e cartas imensas, todo um atlas onde vivem os elefantes que não esquecem, uma selva de letras tremidas, tinta a desaparecer, cheiro a mofo e alfazema, um harém de tecidos sem corpo. Encontro cartas e desabafos, postais de Corroios e Algarve, cartas de amor e amizade, bilhetes das salas de aulas, fotografias antes de ver mundo, com biquinis às riscas azuis-bebé e corpo a desabrochar.
Reencontro tudo isto e sorrio. Sorrio pelo ontem que passou e ainda parece hoje, pela raiz de mim que cá fica,; da menina que lia Romeu e Julieta em voz alta e anotava as palavras difíceis, enquanto deixava a aranha habitar aquele quarto cheio de luz (sempre tive horror às trevas), enquanto tecia a sua teia. Sorrio perante a menina que ficou e está feliz, por este agora, e da inocência que voa leve ao redor destas memórias que esqueci em baús e caixas para lembrar.
No fundo, servem, acredito, para me fazer voltar a mim, a casa, para me lembrar dos sonhos, do que ficou, do que vem, de como é importante esquecer para me lembrar. Talvez devesse voltar a escrever cartas à mão, postais, longos cadernos com poemas e prosa, agendas. Talvez devesse escrever mais, só isso, uma prosa em longa metragem um plano sequência; ou fotografar e imprimir as fotos. Esquecê-las numa caixa, catalogadas. Preciso deste meu "lixo" para que os sonhos continuem sempre a fazer sentido.
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