quarta-feira, agosto 21, 2013

A origem da Felicidade

A felicidade é um bicho relativo, um deus raro, uma mancha no corpo, uma borboleta. Entra e sai com a mesma subtileza de um vírus, de uma doença, de uma, uma, uma disfuncionalidade, uma alergia, enfim um suspiro. A Felicidade é uma arte escassa, volátil, fugaz, fugidia, uma fora-da-lei, uma justiceira invisível, um brinquedo, um malvado truque da imaginação, um arroubo. É uma artesã, molda com as mãos, devagar. É libertina, não a conseguimos guardar; é um viajante sempre de partida.

Vivemos e, à medida que isso acontece, aprendemos que nada permanece para sempre, e que, tanto os momentos que doem como os que nos exaltam o corpo são episódios passageiros. Isso é bom, instrui, fortalece. 

Aprendi cedo a estar além do tempo para entender que tudo se perde. Parece que o corpo fica, mas a consciência sai, olhando, vigilante, observadora e voyeur,  outro pedaço que ficou. Talvez isso me deixe viver um bocado menos (mas quem é se importa de medir essas coisas, afinal), ou até mais, mas a razão deste texto nada tem de melancólico, é apenas a memória da escassez das pequenas coisas, como a efemeridade de um sorriso, como da gota da tua lágrima.

Ocorre-me tudo isto por causa do desenho que S. ontem fez. Para ela não havia nem tempo, nem compromissos. O compromisso era pintar e isso fazia-a feliz. A certa altura também eu estava a desenhar: sem compromissos com o relógio ou o telefone. Eu que nunca tive jeito para o desenho , mas gostaria; é que tanto gosto de desenhar e pintar sem saber como. Estarreço a olhar para aquele branco de página, com tanta vontade de a preencher e desajeitada começo a rabiscar com pincel e aguarela uns traços ininteligíveis. A Felicidade, na infância, pode ser isto. A permissão de se viver sem compromissos com o tempo.

Em bebés, a primeira vez que conhecemos a felicidade talvez seja quando mamamos; quando nos dão de comer quando temos fome, quando nos refrescam a boca com sede, quando nos mudam a fralda. E ninguém se preocupa onde adormecemos, desde que alguém esteja por perto para nos vigiar. Depois, achei que a felicidade era o recreio, voltar para casa, e os fins-de-semana para ir à piscina. Isso bastava-me. Vieram depois os livros, a descoberta da caneta vermelha do meu pai para os riscar; e, mais tarde, quando aprendi a distinguir o cheiro das páginas, as horas que gastava a lê-los. E a sublinhar palavras ininteligíveis no Rei Lear, na Divina Comédia, no Vermelho e o Negro, no Crime e Castigo. Livros demasiado precoces e ininteligíveis. Sei que aprendi palavras belas muito cedo.  Mas tenho de voltar a lê-los porque não me lembro que personagens habitam.
 
Veio uma altura em que a felicidade eram as férias de verão. A praia, o corpo bronzeado, os gelados (o corneto, o Epá e a chiclete de bolinha no final, o Calipo). Isso no início, porque depois veio a praia com os namorados.

Alturas houve em que a felicidade eram calças de marca, elásticas. Felizmente a parvoíce passou-me rápido, até porque o mealheiro nunca era suficiente.

Recordo-me que a felicidade chegou a ser pic-nics, corpos deitados em relva, livros adormecidos. 
 
Depois, vivemos e começamos a ver a felicidade ainda mais nos amigos, na Família, na leveza, no Amor, quem sabe, um dia, nos filhos. É este estado de humanidade que nos traz a felicidade. Feliz é ser isto, todos os dias, um pedaço de humanidade. 
 
P.S. Reparei que não mencionei o trabalho, talvez porque aquilo que faço não o considero trabalho, mas parte de mim!

Sem comentários: