quarta-feira, agosto 21, 2013

Leio a versão em Português, edi. Relógio de Água, mas agarrou-me esta capa em espanhol


Acordo às 7h, vejo a manhã resmungar porque hoje esteve frio. Tão precoce hoje a escrita, tão madrugadora a leitura. Assim vou acabar-te cedo, livro meu. Assim depressa escorregas nas minhas mãos para o russo que me espera. A geografia literária é, por isso, uma coisa linda. Saio do uruguaio, para o russo, com um português na estante e um palestiniano nos intervalos. Não há, pois, espaço público mais democrático do que a minha secretária de luz vermelha. Lê-se mais depressa!

A origem da Felicidade

A felicidade é um bicho relativo, um deus raro, uma mancha no corpo, uma borboleta. Entra e sai com a mesma subtileza de um vírus, de uma doença, de uma, uma, uma disfuncionalidade, uma alergia, enfim um suspiro. A Felicidade é uma arte escassa, volátil, fugaz, fugidia, uma fora-da-lei, uma justiceira invisível, um brinquedo, um malvado truque da imaginação, um arroubo. É uma artesã, molda com as mãos, devagar. É libertina, não a conseguimos guardar; é um viajante sempre de partida.

Vivemos e, à medida que isso acontece, aprendemos que nada permanece para sempre, e que, tanto os momentos que doem como os que nos exaltam o corpo são episódios passageiros. Isso é bom, instrui, fortalece. 

Aprendi cedo a estar além do tempo para entender que tudo se perde. Parece que o corpo fica, mas a consciência sai, olhando, vigilante, observadora e voyeur,  outro pedaço que ficou. Talvez isso me deixe viver um bocado menos (mas quem é se importa de medir essas coisas, afinal), ou até mais, mas a razão deste texto nada tem de melancólico, é apenas a memória da escassez das pequenas coisas, como a efemeridade de um sorriso, como da gota da tua lágrima.

Ocorre-me tudo isto por causa do desenho que S. ontem fez. Para ela não havia nem tempo, nem compromissos. O compromisso era pintar e isso fazia-a feliz. A certa altura também eu estava a desenhar: sem compromissos com o relógio ou o telefone. Eu que nunca tive jeito para o desenho , mas gostaria; é que tanto gosto de desenhar e pintar sem saber como. Estarreço a olhar para aquele branco de página, com tanta vontade de a preencher e desajeitada começo a rabiscar com pincel e aguarela uns traços ininteligíveis. A Felicidade, na infância, pode ser isto. A permissão de se viver sem compromissos com o tempo.

Em bebés, a primeira vez que conhecemos a felicidade talvez seja quando mamamos; quando nos dão de comer quando temos fome, quando nos refrescam a boca com sede, quando nos mudam a fralda. E ninguém se preocupa onde adormecemos, desde que alguém esteja por perto para nos vigiar. Depois, achei que a felicidade era o recreio, voltar para casa, e os fins-de-semana para ir à piscina. Isso bastava-me. Vieram depois os livros, a descoberta da caneta vermelha do meu pai para os riscar; e, mais tarde, quando aprendi a distinguir o cheiro das páginas, as horas que gastava a lê-los. E a sublinhar palavras ininteligíveis no Rei Lear, na Divina Comédia, no Vermelho e o Negro, no Crime e Castigo. Livros demasiado precoces e ininteligíveis. Sei que aprendi palavras belas muito cedo.  Mas tenho de voltar a lê-los porque não me lembro que personagens habitam.
 
Veio uma altura em que a felicidade eram as férias de verão. A praia, o corpo bronzeado, os gelados (o corneto, o Epá e a chiclete de bolinha no final, o Calipo). Isso no início, porque depois veio a praia com os namorados.

Alturas houve em que a felicidade eram calças de marca, elásticas. Felizmente a parvoíce passou-me rápido, até porque o mealheiro nunca era suficiente.

Recordo-me que a felicidade chegou a ser pic-nics, corpos deitados em relva, livros adormecidos. 
 
Depois, vivemos e começamos a ver a felicidade ainda mais nos amigos, na Família, na leveza, no Amor, quem sabe, um dia, nos filhos. É este estado de humanidade que nos traz a felicidade. Feliz é ser isto, todos os dias, um pedaço de humanidade. 
 
P.S. Reparei que não mencionei o trabalho, talvez porque aquilo que faço não o considero trabalho, mas parte de mim!

terça-feira, agosto 06, 2013

É importante esquecer, para lembrar


 Acontece-me sucessivamente. Ocorre ao abrir uma gaveta, um armário, um guarda-vestidos, ao olhar debaixo da cama, caixotes, dentro de livros, ao vasculhar as estantes, caixas, sacos, malas e carteiras, entre agendas. Só não acontece debaixo das carpetes ou tacos, porque não me dei ao trabalho de os remover. Nem no quintal, debaixo de terra fofa, onde não me lembro se alguma vez terei enterrado um tesouro, um mealheiro com escudos, uma carta de Amor precoce, um dente, uma trança. (A trança tenho-a no baú do Brasil, pequenina, que me fez um homem em Porto Seguro. Bela metáfora, portanto). 

Acontece-me recorrentemente talvez porque guardo tudo, até o bilhete de metro daquela viagem em Budapeste; à conta da cachaça no BH em São Paulo. Sucede-me encontrar memórias, daquelas que havia esquecido. Com o tempo acredito que começo a guardar menos coisas, desenvencilhando-me do abuso que é ter papéis e folhas soltas, postais e contas de restaurantes. 

A minha mãe chama-lhe lixo, é certo. Talvez tenha razão. Talvez, por isso, entro em pânico sempre que me diz que arrumou o quarto que já pouco ou nada habito. Arrumar para mim, aquele quarto, é tirar um pedaço de mim. Aquele cartão, aquela moeda, aquele botão... Tudo tem uma lógica, corrijo-lhe um pouco nervosa já, com as mãos suadas, palpitações, arritmia evidente. (Chamem o médico, se faz favor que isto não vai correr nada bem. Oxigénio, exercícios zen, Yoga ajuda.) 

Eu insisto nas memórias. Deixo-as soltas, olvidadas, entregues ao pó e às traças, à humidade dos Invernos, à secura dos Verões, às aranhas e outros seres microscópicos que se alimentam de memórias físicas. Acontece-me recorrentemente, quiçá, porque tenho propensão para coleccionar aquilo que não se coleciona: o presente de um já passado. 

Dá-se, frequentemente, por ventura, ou porque vivo muito (benzo-me perante a falta de humildade e relativa análise do que isso será), ou porque estou a ficar velha e guardo já demasiadas lembranças com generosidade feliz para as que ainda possam vir.

Eu vou dizer o que me ocorre: encontrar fotos antigas, postais e cartas imensas, todo um atlas onde vivem os elefantes que não esquecem, uma selva de letras tremidas, tinta a desaparecer, cheiro a mofo e alfazema, um harém de tecidos sem corpo. Encontro cartas e desabafos, postais de Corroios e Algarve, cartas de amor e amizade, bilhetes das salas de aulas, fotografias antes de ver mundo, com biquinis às riscas azuis-bebé e corpo a desabrochar. 

Reencontro tudo isto e sorrio. Sorrio pelo ontem que passou e ainda parece hoje, pela raiz de mim que cá fica,; da menina que lia Romeu e Julieta em voz alta e anotava as palavras difíceis, enquanto deixava a aranha habitar aquele quarto cheio de luz (sempre tive horror às trevas), enquanto tecia a sua teia. Sorrio perante a menina que ficou e está feliz, por este agora, e da inocência que voa leve ao redor destas memórias que esqueci em baús e caixas para lembrar. 

No fundo, servem, acredito, para me fazer voltar a mim, a casa, para me lembrar dos sonhos, do que ficou, do que vem, de como é importante esquecer para me lembrar. Talvez devesse voltar a escrever cartas à mão, postais, longos cadernos com poemas e prosa, agendas. Talvez devesse escrever mais, só isso, uma prosa em longa metragem um plano sequência; ou fotografar e imprimir as fotos. Esquecê-las numa caixa, catalogadas. Preciso deste meu "lixo" para que os sonhos continuem sempre a fazer sentido.  

segunda-feira, agosto 05, 2013

Dona Rosa e os Vasos de Flores

A luz das manhãs de Verão são sempre mais generosas nos telhados da Sé. Primeiro rasa as telhas, diafanamente, como se ganhasse pés de algodão, afagando a humidade que se entranha durante a noite. A culpa é do rio, que se evapora em partículas vadias que se querem escapar numa espécie de emancipação. Mal sabem que nunca mais desta cidade sairão, porque quando se erguem mais alto, na subida molecular, plasmando-se na invisibilidade dos olhos nus, amadurecem e vêem do alto a beleza incontestável das texturas da cidade. São camadas, senhoras e senhores, são camadas. Estratos, sedimentos. Um mosaico ora conforme ora disforme.
Em manhãs como essas, enquanto a Rosa ainda boceja, e os olhos remelentos, remelados, remelosos (o caramelo das lágrimas), se deixam descolar, a luz picota formas das pequenas casas. Dona Rosa abre as portadas, como quem autoriza o solar fluxo radiante a entrar. Ele polariza-se nas íngremes vielas, entranha-se na tinta a estalar, nos pigmentos que sobram dessas cores agoniadas.
Numa dessas manhãs, em que o sol a pino ameaça escalar os telhados com luz dura, Dona Rosa - que respeito por esta sessentona se quer - é ofuscada por tamanha claridade tão precoce. Cega, fechando os olhos, reagindo a íris à tirana do clarão, do brilho, do fulgor, quem sabe rebeldia adolescente desse sol de estio, esparrama as portadas de madeira irritada, áspera, desabrida, mais áustera que as mãos calejadas desta peixeira. E aqueles vasos, onde se enterram violetas, malmequeres, lírios e brincos-de-princesa que ainda só agora começaram a viver, precipitam-se, frágeis e ingénuas, para uma liberdade aparente, bem junto à medieval porta do Sol. Irónica sina esta, a das flores da Rosinha.  
Dona Rosa, ainda mal recomposta da sonolência e do choque põe-se a berrar, esbraceja com voz de quem sonhou pesadelo com o Zé pescador, como se estivesse embalado em tempestade em alto mar. Lá em baixo, terra espalhada, flores derramadas. E o sol, culpado infalível neste crime, inamovível. Nem pasmo se lhe viu no rosto iluminado. Dizem, contudo, as más línguas que se regozijou do feito.

sexta-feira, agosto 02, 2013

A revolta dos livros

 A caçadora de histórias conseguiu enviar uma carta relatando o sucedido e assegura desconhecer o paradeiro. Numa Utopia distante a 28 mil e oitocentos segundos e milhares de movimentos oculares, para um sono de oito horas, começou a insurreição dos livros. A culpa é de Lis: vasculhou as estantes dos escritores, férteis em monstros, mitologias, musas e personagens ávidos de se revoltar contra aqueles que os escreveram. Como ganhassem vida, os livros reúnem-se em “Biblioniria”, ilha invisível que o próprio escritor Italo Calvino desconhece.
Ela assegura: “foi um sonho”. Porém, eles são geografia de concretização, conspirando golpes e revoluções silenciosas. 

"Lis, ouve: - 'Shakespeare escreveu que somos feitos da mesma matéria dos sonhos, p.i., podes ter aberto uma Caixa de Pandora."

O que aconteceu? Ela entrou na velha casa de Jorge Luis Borges, cujo espólio é guardado pela viúva María Kodana. Encontrou o verdadeiro Livro de Areia (1975), matéria do conto borgeano com o mesmo nome. É a obra das páginas infinitas que, tal como as partículas de areia, carece de princípio e de fim. Numa das páginas, encontrou o mapa secreto para a ilha. Lis foi sugada, movediçamente. Tentou resistir; agarrou outro livro de Borges. Levou-o na mão.
Engolida, aterrou, porém, em areia firme. Esbarrou com Homero, que tentava reescrever a Odisseia. Ele conversava com um sujeito de pala no olho. Falavam em Aravia, a Língua que não se entende. Contudo, o livro ato contínuo apagava o que o autor alterava. Dostoiévski tentava o mesmo com Crime e Castigo; Kafka com a Metamorfose. Eram milhares de escritores nessa mesma tarefa.
As páginas: enraivecidas, começaram a soltar-se: chuva de papel e areia. Escritores: olhos de espanto e mãos no ar, tentando pinçar as folhas. Lis ensaiou o mesmo, mas carregava o outro livro: História da Eternidade. Perdi-lhe o rasto.

Crónica de Vanessa Rodrigues, publicada a 2 de Agosto 2013, na pág. Bairro dos Livros, iniciativa Culture Print, no Semanário Grande Porto, em alternância com Rui Manuel Amaral, Rui Lage e Jorge Palinhos.