sexta-feira, fevereiro 01, 2013

*[.a tinta fina.|um] O poeta do espanto

Entrevista

Ferreira Gullar. "O acordo ortográfico é uma perda de tempo"

por Vanessa Rodrigues, no Rio de Janeiro,

Publicado em 12 de Agosto de 2010 no jornal i 
Foto de Walter Craveiro/FLIP

O prémio Camões deste ano falou ao i no rescaldo da FLIP sobre letras, Brasil e poesia. No próximo mês publica "Alguma Parte Alguma"

Seguir o raciocínio do poeta Ferreira Gullar, de 80 anos, é um exercício simultâneo de pensamento-linguagem-pensamento. Tem o discurso marcado pelas perguntas retóricas e troca, recorrentemente, o sentido das palavras numa voz pausada e carregada pelo chiado da típica sonoridade carioca. Tal como fez com o título do seu novo livro na última Festa Literária Internacional de Paraty: "Parte alguma significa em nenhum lugar; alguma parte significa algum lugar." O público ficou baralhado.

Este pensador da língua fala gesticulando as mãos, enquanto os alvos cabelos médios descaem para a frente e para trás, acompanhando o movimento do corpo esguio. É vivaz como um adolescente e de palavras sempre afiadas para a resposta.

Na última FLIP disse que "a arte existe porque a vida não basta". Qual é a função dela na sua?

Nós inventamo-nos e inventamos a nossa própria vida. Somos seres culturais, então a função da arte é ajudar a inventar a vida e contribuir para a criação desse mundo fictício, desse mundo imaginário que é o nosso mundo. Vivemos na cidade que nós inventámos e construímos. A poesia é parte disso. Quando digo que a arte existe porque a vida não basta é porque nós queremos sempre mais. O ser humano está sempre inventando e reinventado a sua própria vida, os valores. Isso mostra que a vida pode ser mudada. Como os valores que nos suportam são por nós criados, eles também podem ser transformados. Abre a perspectiva de que a sociedade pode mudar. E essa é a visão que um artista tem dentro da sua função de criar uma mentira, como diz o Picasso. Uma mentira que é mais verdadeira do que a verdade.

Se inventasse alguma coisa, o que inventaria?

Eu não sou de inventar muitas coisas. O que eu faço mesmo é a minha poesia e isso é uma coisa que não depende de mim inteiramente. O poema não pode ser feito por decisão minha. Eu digo que a minha poesia nasce do espanto, de alguma coisa que me tira do equilíbrio do quotidiano. Se isso não ocorre, o poema não nasce. Se pudesse, escreveria poesia dia e noite, mas isso não é possível. As pessoas também sonhariam viver o amor a vida inteira, apaixonados, mas tudo são maravilhas que não acontecem como a gente quer. E a poesia também, o sonho a cada momento. Tomara eu estar naquele estado para escrever um novo poema, mas nunca sei qual é, porque é uma coisa que surge inesperadamente.

Qual é a importância que o tempo tem na sua vida?

Na minha poesia essa questão do tempo é frequentemente colocada. Eu sou bastante impressionado com essa relação tempo-espaço, o passar do tempo e a mudança qualitativa do próprio tempo. Nisso eu adopto um pouco a visão científica. O tempo como uma relação tempo- -espaço é, ao mesmo tempo, o passar, é o movimento da matéria. É o apodrecimento da pêra que é o tempo. E o tempo na pêra é uma coisa, o tempo em mim é outra coisa, o tempo do avião que voa é outra coisa, então há muitos tempos num só tempo. Aliás, no meu "Poema Sujo" eu toco nesse assunto ao dizer que a cidade tem muitas velocidades e ela é mais lenta num mel que se verte num copo e mais rápida no voar do pássaro que cruza a janela. O tempo é muitas coisas. Em cada coisa um tempo diferente. A cidade tem muitos núcleos, tem velocidades diferentes. Nós temos um tempo subjectivo também, temos também um tempo externo, que é o nosso caminhar pela rua, e dentro de nós está-se passando outra coisa, que pode ser a memória, que pode ser um outro poema que está nascendo. É uma coisa de enorme complexidade.

Que legado percebe que já deixou para a língua portuguesa?

De uma maneira ou de outra, os poetas, como são artesãos das palavras e reinventores da linguagem, lidam com a língua de uma maneira muito especial. Cada poeta tem, pelo menos, um dialecto e eles contribuem, de algum modo, para o enriquecimento da língua. Eles criam formas inesperadas de dizer as coisas. Sou um poeta que lida especialmente com essa questão da linguagem. Cheguei até a violentá-la de uma maneira tal. Acredito e é possível que a minha poesia tenha alguma influência sobre a língua que nós brasileiros usamos. Nem sei se na língua portuguesa em geral.

E o acordo ortográfico contribui para enriquecê-la?

Eu acho que o Brasil e Portugal, com os outros países de língua portuguesa, têm de parar com essa coisa de ficar mudando as regras ortográficas. Eu acho que é uma coisa que não ajuda em nada. É uma perda de tempo. Cria confusão, inclusive dá prejuízos. Já imaginou o que vai acontecer? Colecções de livros vão ter que ser jogadas fora e reimpressas, para obedecer a uma nova ortografia porque uma ou duas pessoas resolveram mudar a maneira de escrever a língua. Isso é uma arbitrariedade. Quem é que outorgou a essas pessoas o direito de fazer isso? A língua é património do país, da população, não é propriedade de ninguém. Não pode haver uma entidade que decide mudar a língua de todo o mundo. Isso é um absurdo. É uma coisa precária, que cria confusões, porque é impossível você encontrar uma forma de colocar todos os países de língua portuguesa em que não se crie ambiguidade nenhuma. É um sonho vão. A ortografia tem de ser uma representação da linguagem falada. Então é uma bobagem. Uma perda de tempo.

E que Brasil é este hoje?

O Brasil está atravessando um momento crucial. A América Latina, de maneira geral, está vivendo uma experiência que pode ter como consequência grave um renascimento do populismo. Num momento em que, no mundo, o socialismo real acabou e a visão socialista deixou de ser a grande utopia, de repente, aqui na América Latina surge um pseudo-socialismo que, na verdade, muda a relação que havia entre o socialismo que era um conflito entre a classe operária e a burguesia. Agora é entre pobres e ricos. E isso resulta na criação de governos populistas que, na verdade, enganam a opinião pública e que cerceiam as liberdades. E uma das tendências é reduzir ao máximo a liberdade de opinião, como se está vendo na Venezuela. Aqui no Brasil não aconteceu, pelo menos por enquanto, mas houve tentativas de controlo da opinião pública, de criar conselhos de imprensa sobre controlo do governo. O Lula sonhou em fazer, mas não consegue porque o Brasil é um país muito mais complexo e muito mais avançado. Mas não se sabe o que vai acontecer se a Dilma [Rousseff] for eleita, porque eles já se estão apropriando de muitos sectores.

Por exemplo.

A Petrobrás é uma empresa do povo brasileiro e virou propriedade dele. Agora mesmo, na FLIP, pelo facto de terem chamado o Fernando Henrique Cardoso para fazer uma palestra retiraram o patrocínio. Só se patrocina se a FLIP não aceitar figuras que sejam adversários do governo? Estamos onde, na ditadura? Aliás a ditadura sobre esse aspecto é muito mais tolerante do que o governo Lula. Todo o mundo que se opõe a ele vira inimigo. Agora, usar o dinheiro público da Petrobrás para fazer política é uma coisa ameaçadora. Eu tenho pavor que a Dilma ganhe essa eleição porque ela é uma invenção do Lula. Ela não é política, não entende de nada; é simplesmente uma marioneta que Lula quer eleger valendo-se da sua popularidade, que vem do populismo, que vem de fazer bolsa-família: de dar dinheiro público para 40 milhões de brasileiros, pobres, então isso é uma coisa muito grave, é um retrocesso muito grande. Eu vejo com muita preocupação o que está acontecendo aqui. 


*a tinta fina é uma rubrica quinzenal (entrevistas com escritores) da autoria da jornalista Vanessa Rodrigues, no blogue pessoal Crónica Luna Samba, por amor à literatura. As entrevistas podem ser exclusivas do blogue ou já ter sido publicadas na imprensa. A próxima será publicada a 15 de Fevereiro

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