"as coisas estão no mundo só que eu preciso aprender"
"vivemos, estamos vivendo, lutando para justificar nossas vidas"
(Paulinho da Viola)
Há tardes absolutamente mágicas. Há dias em que o acaso se ri para nós, na esquina de uma rua todos os dias calcorreada, e nós, mais disponíveis para amar o amor do presente, acendemos "a vela no breu". No breu da nossa fugacidade. No breu da imprevisibilidade, com atenção devida, pois, estamos mais disponíveis para sermos levados, sem agenda, sem horários, sem compromissos, apenas um pacto provisório com o nada. Estamos a viver um pedaço de vida como ela for.
Pus a Pentax K-1000 na bolsa, o velvia ainda lá está a carecer de 10 cliques para virar revelação e positivo, e levei a vida para a tarde. Mas quis ela, porque já tinha outros planos para mim, que voltasse ao lugar de um pequeno crime sem maldade e não terminasse os dez frames finais. Isso porque, apercebo-me, tenho queda para a serendipidade.
Ando a investigar os prédios antigos da cidade com propósitos, claro, fotográficos. Se perguntarem digo a verdade, que adoro a doçura e a meiguice de prédios antigos, que gosto de espreitar fechaduras improvisadas à procura de histórias. Que sou uma miúda curiosamente metida que se encanta com placas antigas de telefones ainda do tempo de ingleses, com portas de vidro com nome de detetives privados, com campaínhas de ferro e maçanetas velhas. E isto com a idade fica cada vez pior. Sem nostalgias. Mas a atualidade noticiosa e a frugalidade das conversas superficiais interessam-me cada vez menos e estou empenhada em viver dias felizes todos os dias, com calma e horas que valham a pena. Um imenso agora, porque é o que realmente importa, na justa selecção do tempo.
Voltei ao local do delito porque a primeira vez que fui lá parar a porta estava fechada. Desta vez a porta estava entreaberta e o Nuno Moreira, senhor dos seus competentes 56 anos, talvez, um artesão do vinyl -porque os lava, limpa, estima, preserva e torna capas velhas em novas - me recebe como quem estava à minha espera. Nunca nos víramos. Passamos a tarde a falar e a ouvir música de intervenção (Adriano, José Mário Branco, Fausto, Manuel Freire, e outros como o Gabinete de Acção cultural), Carlos Paredes ao vivo em Frankfurt, James Brown, bossa nova (João Gilberto, sobretudo) e Carmen Miranda. Ah, quase me esquecia: e os Beatles portugueses. Os sheikes. Alguém se lembra?
As paredes e a memória dele contaram histórias. Embeveci. E, depois, ele fez questão de me mostrar os cantos à casa. Ou melhor dos corredores daquele andar, porque são casas onde as vidas se passam num corredor que atravessa a casa. Do lado de dentro casas residenciais. Do lado da rua, escritórios. Naquele piso, particularmente, encontros ecuménicos: a sala de vinis novos, a sala de vinis velhos, um tarólogo, uma vendedora de produtos de cosmética natural, uma sala de reuniões espíritas e a sala da associação de detetives privados vazia, por alugar. Há ainda uma cantora lírica reformada que fez carreira na América Latina. O prédio, um organismo vivo.
Na contabilidade da despedida trouxe "O melhor de João Gilberto", "James Brown" e o Paulinho da Viola, "Memórias Cantando". Lá deixei reservados a Carmen Miranda, o Carlos Paredes e a coletânea de música de intervenção. A vida, dizia Nelson Rodrigues, como ela é. Talvez esta seja uma forma de amor universal.
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